Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Reflexões sobre a UTI: as relações humanas estão doentes
O aprimoramento das relações humanas sempre foi questão central em qualquer área das relações pessoais.
Carl G. Jung foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica. É dele a frase: "Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana".
Para seguir estimulando o debate qualificado e a reflexão crítica proponho alguns aspectos a serem analisados. Unir comportamento ético, conhecimento técnico, compaixão e empatia são fundamentais na relação médico - paciente.
Essa relação envolve questões éticas, filosóficas, comportamentais e até de natureza econômica. Aspectos de natureza econômica, porque já foi utilizado como argumento para um comportamento inadequado o desgaste advindo de inúmeros empregos necessários para a sobrevivência ou o pouco investimento da administração na formatação e adequação do ambiente de trabalho.
Embora todos esses argumentos tenham algum fundamento, tornam-se frágeis diante da necessidade de superação que se impõe, visto que relacionamento distante diante de um paciente fragilizado pela enfermidade é inaceitável.
Aprendi muitas coisas na Faculdade de Medicina, mas lidar com a fragilidade emocional diante da agressão que é a grave enfermidade, não foi uma delas. Aprende-se na vida.
Na contramão da lógica, o ambiente de terapia intensiva parece colaborar para um comportamento técnico e pouco empático. Isso sem considerar a pandemia, momento que obviamente isolou mais os pacientes de seus familiares e foram atendidos por seres mascarados, o que dificultou a identificação e claro, a relação.
Afora pandemia, já tentei enumerar varias explicações para tal comportamento, mas não vou fazê-lo novamente porque nenhum argumento foi capaz de justificar sozinho esse inexplicável fato.
Tamanha é a relevância do tema, que em 2003 o Ministério da Saúde obrigou-se a criar um programa com o objetivo de fortalecer o vínculo entre médicos e pacientes. Esse programa chamado de Programa Nacional de Humanização (PNH) tenta mudar o conceito baseado apenas no voluntarismo, assistencialismo e paternalismo, e que tem com base na figura ideal do "bom humano".
Para os formuladores do PNH, humanização não pode se restringir a "ações humanitárias" e não é realizada por seres humanos imbuídos de uma "bondade supra-humana" na feitura de "serviços ideais". Dessa forma, propuseram uma reorganização dos processos de trabalho em saúde, com transformações nas relações sociais que envolvem trabalhadores e gestores em sua experiência cotidiana de organização e condução de serviços. Propuseram também transformações nas formas de produzir e prestar serviços à população.
Em resumo, a ideia era mudar o modo de gerenciar e cuidar. Ainda estimulava a comunicação entre gestores, trabalhadores e usuários para diminuir atitudes desumanizadas e possibilitar um trabalho conjunto entre eles.
Perfeito em tese. Faltou combinar com os atores.
Não se melhoram relações humanas com atos normativos. Sem investimento em qualificação, infraestrutura, condições de trabalho, treinamento, uma espécie de lógica que orienta a ação, não se constrói um novo modelo assistencial.
Mas voltemos para terapia intensiva, que é nosso tema central. Essas unidades surgiram na década de 70 com o objetivo de cuidar de maneira intensa dos distúrbios físicos gerados pela doença ou por cirurgias de alta complexidade.
Havia necessidade de concentração de recursos materiais e humanos e do aperfeiçoamento para o atendimento a pacientes graves e em estados críticos, porém ainda recuperáveis. Também da necessidade de uma assistência médica, de uma equipe multidisciplinar contínua e com observação constante, centralizados em um núcleo especializado.
Entretanto, em nenhum momento se perguntou se havia estrutura emocional para se enfrentar tamanha agressão e isolamento. A fragilidade emocional instalada pela doença e medo da morte foi agravada por um ambiente sem janelas, relógios, contato com familiares, sem próteses dentarias, óculos, vestimentas e pela falta de comunicação; mas isso não foi levado em conta. Em nossa visão sob a ótica distorcida da arrogância, salvam-se vidas; então tudo está justificado.
Surge então o delirium em grande parte desses pacientes, e isso foi considerado por muito tempo uma questão irrelevante se desconhecendo o aumento da mortalidade desses pacientes, sem contar o agravo do sofrimento.
Não à toa, essas unidades foram e ainda são consideradas por grande parte da sociedade como locais de morte e sofrimento.
Como se houvesse na entrada dessas unidades a mesma inscrição que Dante e Virgilio, no livro "A Divina Comédia", encontraram na porta do inferno: "lasciate ogni speranza, voi ch'entrate", ou seja, "deixe suas esperanças do lado de fora, você que entra no inferno".
A terapia intensiva é um local de vida. Os pacientes que estão irremediavelmente morrendo devem permanecer com seus familiares. Essa percepção precisa ser trabalhada na sociedade. Uma retomada desse ambiente foi necessária, não somente alterando a estrutura física e comunicação com o exterior através de janelas, relógios, televisores, mas resolvendo o dilema do binómio segurança - privacidade.
Percebeu-se a necessidade e importância de um treinamento constante da equipe.
Treinar humanidade?
Treinar seres humanos para serem humanos? Isso mesmo. Estranho, mas humanizar é uma habilidade e requer treinamento constante. É preciso recuperar a preocupação com a necessidade, ou seja, em última análise é preciso colocar-se no lugar. Treinar todos os dias entrar no quarto e dizer: "Meu nome é ..., minha função aqui é..., e vou cuidar de você nas próximas horas e se precisar de mim eu estarei aqui".
Isso é desligar o automatismo. Sem isso as ações são baseadas exclusivamente na realização de tarefas.
Infelizmente humanizar não pode ser um conjunto de normas pré-estabelecidas e aplicadas indiscriminadamente. Portanto, não é possível criar um discurso padrão, fingir um sorriso ou um comportamento. É preciso atitude, desenvolver vínculos solidários, uma postura, um sentimento.
É compreender os medos, as incertezas e as angústias. É ainda valorizar todos os elementos implicados na assistência, ou em última análise é desenvolver o respeito afetivo ao outro.
Segundo Jaime Betts, quando faz considerações sobre o que é o humano e o que é humanizar (Portal Humaniza, 2003. Disponível em: www.portalhumaniza), "as coisas do mundo só se tornam humanas quando passam pelo diálogo com semelhantes", ou seja, dar voz a dor.
Infelizmente, muitas vezes a atitude do médico ou da equipe cuidadora é a esquiva, transferindo esse importante momento que sim, faz parte do cuidar, aos "cuidadores da alma" que são os psicólogos.
Outro dificultador nessa relação dentro da terapia intensiva por mais estranho que possa parecer, foi o incremento da tecnologia.
Visitas no computador, análises de exames de imagem em detrimento do exame físico, do contato e da conversa, parecem tendências atualmente, por uma absoluta análise inadequada de prioridades. Assim, há tristes relatos de pacientes que dizem se sentirem extensões de máquinas e aparelhos. As pessoas querem se servir, mas não depender da tecnologia.
O ambiente hostil das terapias intensivas, cada vez mais sofisticadas, as torna impessoais e inevitavelmente despersonalizantes. Assim, não agridem apenas os pacientes ali internados, mas toda a equipe multiprofissional que lida com familiares no limite do controle emocional. São pacientes que demandam vigilância extrema (mesmo assim tem que ter sua privacidade resguardada) e com situações cotidianas de extrema urgência, de sofrimento e até morte.
Cabe então, a coordenação da UTI e a administração do hospital cuidar desse grupo (aí, o notório cuidar de quem cuida), com escalas mais flexíveis, melhores remunerações e sobretudo com a formatação de um ambiente saudável de trabalho.
Há um consenso entre as equipes multiprofissionais que o excesso de trabalho, estresse emocional de quem lida com a vida em seu limite e a remuneração inadequada são fatores estressores que, por mais que lutemos contra, distorcem nossas avaliações e atrapalham nossas relações.
A luta pela sobrevivência nos tornou mais céticos e perigosamente velozes em nossas abordagens com pacientes e familiares. Assim, esquecemos no dia a dia que médicos ou não, enfermeiros ou não, somos todos iguais e vamos adoecer nessa jornada e morrer inexoravelmente necessitando de ajuda médica ou simplesmente fraterna e humana, se é que não se trata da mesma coisa.
Entender a dimensão do ser humano não apenas como um ser biológico, mas como um ser psicossocial que tem emoções, sentimentos e pudores é parte fundamental desse processo. Só aí se passa a valorizar e dar importância ao uso de próteses e órteses (o que na maioria das vezes é possível, ao invés de criar uma regra única), ao sono do paciente (que invariavelmente é desrespeitado) e principalmente a presença da família.
Entendem que apesar de adoecer juntamente com o paciente a família é parte fundamental na sua recuperação.
O familiar deve sempre estar presente e, mesmo assim, reuniões frequentes explicativas ao invés de boletins genéricos que nada informam e mais estresse e angústia trazem, são fundamentais. Além de acalmá-los, a informação é aliada poderosa contra o único inimigo que se apresenta que é a enfermidade.
Esse contato, entretanto, não deve ser formal, burocrático e despersonalizado. Infelizmente, não é incomum a percepção equivocada de quanto menos informação dada, melhor.
Embora o encontro com familiares nunca seja neutro, pois sempre carregamos conosco valores, atitudes, preconceitos, enfim, nosso sistema de significados culturais, ele é sempre bem-vindo porque, além de terem o direito à correta informação, compartilhar sentimentos e emoções é parte nobre da profissão.
O que causa estranheza é que continua sendo necessário refletirmos sobre o fato de que apesar desse tema ser exaustivamente discutido, ainda hoje é flagrante a violação de direitos e de dignidade nestas unidades.
Os pacientes entregam suas vidas a estranhos cujas funções desconhecem, e a rotinas totalmente desconectadas de seus hábitos. Tornam-se, assim, só mais um paciente, um número de leito, uma patologia, sendo-lhes solicitado assim a descartar sua identidade.
As frases do escocês Dunbar Willian (1465 - 1530), "timor mortis conturbat me" (a ideia da morte me mata de medo) e do inglês Charles Chaplin, (1889 - 1977) "a vida deveria começar pela morte para nos livrarmos logo dela", demonstram o temor associado a ideia de morrer. Seguramente o medo da morte criou a religião e incentivou a medicina.
Estar internado em uma UTI nos remete inexoravelmente ao pensamento de morte, justificando o medo e a insegurança nessas unidades.
É necessário lembrar aos profissionais de saúde que estas unidades serão moradas temporárias ou finais para quase todos nós? Falta-nos esta percepção? Falta-nos mais reflexões sobre o tema?
Essas perguntas, respondidas ou não, devem permear nosso ambiente de trabalho e nossa mente, com o intuito de melhorar nosso posicionamento, valores e atitudes, quer pela motivação principal, que é o respeito e a compaixão pelo próximo, quer porque o cuidado humanizado sempre encontrou e encontrará respaldo na sociedade, visto que é justo.
Obviamente não se tem a pretensão aqui de estabelecer um modelo de comportamento para os profissionais de saúde, mas o que se propõe são reflexões, não do ponto de vista acadêmico, mas humanitário. Tais ponderações, apesar de dolorosas, expandem nossas mentes, nossa liberdade e torna a todos nós, médicos ou não, seres humanos mais plenos.
Fato indiscutível é que as relações humanas estão doentes, a medicina está combalida, não por falta de amor ou tempo, pois estes são sintomas e não causas e, por mais analgésicos que se tome, não encontra alívio de seus magníficos dons e acabará se autodestruindo se não for objeto de uma revisão postural.
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