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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Autonegligência: quando desaprendemos o autocuidado por excesso de tarefas

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

05/02/2021 04h00

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Neste texto vou contar uma experiência pessoal, mas que traz uma questão coletiva. Peço que ao longo dessa narrativa você reflita sobre sua própria vivência também.

Sou uma psicóloga e atuo como profissional autônoma há dois anos, então, se você também é autônomo e sem vínculo empregatício, sabe que desde o início do isolamento social devido à pandemia nossos dias foram tomados pela preocupação de conseguir pagar as contas do mês, já que não temos um ganho fixo de dinheiro.

Então, desde março de 2020, com receio de ficar com o orçamento prejudicado, eu comecei a realizar muitos trabalhos, na tentativa de garantir o equilíbrio financeiro em casa. Vale destacar aqui que meu trabalho, antes do isolamento social, era realizado totalmente de forma presencial e o trabalho remoto era algo muito novo.

Nunca tinha me atentado à qualidade da câmera de meu computador ou a velocidade da internet de casa para a realização de chamadas de vídeo de longa duração; também nunca vi minha moradia como um cenário para atividades com crianças e adolescentes ou para palestras com pessoas adultas. A ideia de realizar conversas por aplicativos, fazer lives e atendimentos online nunca tinha me passado pela cabeça. Daí tudo mudou e precisei me adaptar.

Mas não foi só a minha casa que sofreu toda essa mudança. Eu também fui mudando alguns hábitos para adequar meu corpo à nova rotina de trabalho. Por estar em casa, cheguei a pensar que seria confortável trabalhar sentada na cama, na cadeira da cozinha ou na rede. Citando Yuri Marçal: "Ledo engano, ledo, ledo, ledo".

Aos poucos, sem perceber, fui me negligenciando em nome da "otimização" do tempo. As pausas para o xixi foram ficando mais espaçadas (em alguns momentos eu até levava o computador para o banheiro ou escutava um podcast para "aproveitar" a pausa). Meu envolvimento com o trabalho era tão grande que eu "esquecia" de comer e, quando comia, fazia isso na frente do computador, lendo os slides da próxima atividade que faria. Foram quase oito meses nesse ritmo.

De março a novembro meu corpo-mente foi à exaustão. Uma veia do olho esquerdo estourou, tinha dificuldades para urinar e as dores no nervo ciático intensificaram.

Decidida a me cuidar, reservei dois dias inteiros (sábado e domingo) para descansar. Na data agendada eu percebi que tinha perdido a noção do que eu gostava de fazer para relaxar. Não havia nada que eu quisesse fazer que não fosse trabalhar. Parecia que meu corpo estava se sentindo perdido diante da simples tarefa de "ficar de boa".

Se eu escolhia assistir uma série, era sobre algum tema relacionado ao trabalho. Se eu ouvia uma música, a letra me remetia a alguma questão que foi discutida naquele livro da fulana de tal. Deitar no chão do quintal e sentir o vento me parecia algo sem sentido e improdutivo.

Meu corpo estava condicionado, amarrado nessa lógica de trabalhar, trabalhar, produzir, produzir que parecia que eu não ia sair disso jamais. Fiquei um dia inteiro tentando fazer algo que deveria ser simples: descansar.

Compartilhei essa questão com uma amiga e ela informou que estava vivenciando a mesma coisa. Conversei com outras pessoas e percebi que tinha (e tem) muita gente nessa situação.

Foi aí que percebi o quanto eu e muitas outras pessoas estávamos fazendo algo chamado de autonegligência.

Uma explicação rápida: negligência é, basicamente, quando você tem condições de oferecer algo a alguém, mas se recusa a oferecer. A autonegligência é quando você tem condições de oferecer algo para si mesmo, mas se recusa ou não vê sentido em oferecer.

Já te aconteceu de tentar meditar e achar isso uma perda de tempo? Pois é, um dos efeitos da autonegligência em decorrência do excesso de tarefas é ficar inquieta com atividades que promovem calma e relaxamento ou achar que esses momentos de autocuidado são inúteis e sem sentido.

Quero frisar aqui que só é negligência se você tiver condições de oferecer algo e se recusa a fazê-lo. Muitas vezes a gente acusa alguém de ser negligente, mas aquela pessoa não tem condições de dar o que foi pedido e isso não é negligência!

Eu fui autonegligente porque eu poderia ter pausas maiores para esvaziar a bexiga quando meu corpo pedia. Eu poderia reservar uma hora inteira para me dedicar exclusivamente à minha alimentação. Poderia lavar meus cabelos com mais frequência, sem achar que estava "perdendo tempo" naquela atividade. Eu tinha condições de reservar sábados e domingos para descansar, mas não o fiz. E como muitas outras coisas na vida, cabe refletir de forma aprofundada sobre os fatores que nos levam a negligenciar o próprio corpo.

E é a partir daqui que peço a você que expanda essa reflexão para a sua relação com seu corpo:

  • Quantas vezes por semana você segura o xixi para finalizar uma atividade que poderia esperar você retornar do banheiro? Você já teve infecção urinária em decorrência disso?
  • Quantas vezes por mês você diminui seu horário de almoço para ter mais tempo para realizar outra tarefa? Você já teve problemas estomacais por causa disso?
  • Você já teve condições de ficar um dia inteiro sem fazer nada, mas achou isso perda de tempo e acabou se envolvendo em alguma tarefa relacionada ao trabalho?
  • Você já se sentiu ansioso ou muito angustiado por não ter uma tarefa para executar?
  • Você consegue identificar quais são os corpos que aprendem, desde criança, que devem cuidar primeiro dos outros e, se sobrar tempo, poderá cuidar de si?

A autonegligência não é uma questão individual, ela é social e estrutural. Estamos vivendo numa sociedade que valoriza o excesso de trabalho e trata o lazer e descanso como "perda de tempo".

Por fim, deixo uma questão: quem se beneficia (e lucra) com a nossa autonegligência?