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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contar nossas histórias de vida pode nos ajudar a ressignificá-las

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

25/02/2022 04h00

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Eu sou de uma família de pessoas que contam suas histórias. Lá em casa a oralidade sempre fez parte de nossas vidas. Somos contadoras e contadores de causos.

Recordo quando minha mãe contava sobre sua infância e terminava o relato olhando "para o nada", como quem olha para dentro. A mesa da cozinha era um espaço de escuta e contação de nossas próprias vivências. Quando tínhamos um sonho, era na hora do café que contávamos.

E a gente fala alto! Muito alto! Muito mesmo!

Lá em casa, a gente permite que o corpo todo conte a história. Temos movimentos largos quando nossas histórias ganham vida. Braços, vozes e pernas ficam livres e, dependendo do assunto, parece que a gente até vai voar.

Meu pai conta sempre as mesmas histórias e, cada vez que ele narra, a gente acrescenta pontos que ele possa ter esquecido. Vira uma história coletiva.

Essa coisa de esconder histórias, ser obrigada a guardar algo que quero compartilhar, eu aprendi fora de casa. A frase "ninguém te perguntou" eu escutei pela primeira vez na escola, depois na faculdade, no trabalho, nas amizades. Foi fora de casa que eu aprendi a esvaziar os significados de minhas vivências e me calar. E assim eu segui por muito tempo.

Um dia eu ouvi uma palestra de Ronilso Pacheco sobre a importância de contar nossas vivências como um ato de resistência. Ele dizia que o Estado genocida tem a ordem de matar e esquecer, então é importante para nós viver e lembrar.

Eu conto minhas histórias para remoer mesmo, já que remoer significa moer de novo. Então eu sinto que algumas vivências foram tão duras que eu preciso moer outra vez, triturar mais, até que não fique tão difícil digeri-la.

Nossas histórias de vida são iguais à comida: têm vivências que são caldinho, essas a gente engole facilmente e a digestão é leve. Tem outras que são como carne dura com muito nervo, daí é preciso moer, remoer e torná-las mastigáveis para que a digestão não seja impossível.

Eu escolho não esconder algumas de minhas histórias, pois quando falo de mim, falo das interseccionalidades de classe, raça e gênero que atravessam a vida de outras pessoas também.

Quando falo de mim, abro a possibilidade de tornar meu passado algo menos assombroso e assim consigo construir possibilidade de presente e futuro com potência.

Falo de mim porque sou contadora de histórias, sou uma curandeira, uma bruxa que precisa triturar memórias para cuspir revoluções.