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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Inquilinos e prisioneiros: convivência entre pessoas adultas e adolescentes

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/12/2022 04h00

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Jorge* tem 13 anos e tem uma grande habilidade para contar histórias. Sua desenvoltura é tão grande que, quando fala, a turma toda se aquieta para escutar suas aventuras como um adolescente negro periférico morando com a mãe e o irmão de 11 anos.

Certo dia, durante uma atividade de educação em sexualidade, enquanto falávamos sobre conflitos familiares entre adolescentes e pessoas adultas, Jorge contou a história de um centro de detenção chamado "minha casa" e relatou, de forma cômica, que era prisioneiro lá e que vivia encarcerado numa cela que a mãe chama de "seu quarto". Em seu quarto, dizia Jorge, não havia privacidade, ele era tratado como invisível e, constantemente, sua "cela" era aberta para inspeção da carcereira, sua mãe.

Jorge contou a história com toda sua performance e arrancou muitos risos da turma. Alguns se identificaram com a história e diziam fazer muito sentido serem prisioneiros em seus quartos. Teve adolescente que relatou dividir "cela" com os irmãos e irmãs, com a avó ou com os pais. Outros usavam a metáfora da prisão para relatar os horários de banho de sol (saídas para o quintal) ou trabalho forçado (ida para a escola).

Na perspectiva daquele grupo de adolescentes, a casa seria vista como um centro de detenção, as pessoas adultas seriam carcereiros e a turma, a população carcerária.

Após a contação de história de Jorge, compartilhei com o grupo que certa vez participei de uma reunião de responsáveis por adolescentes, e uma mãe contou que sua casa parecia um hotel e seus filhos seriam os inquilinos que só saem de seus quartos para comer. A mãe dizia que sentia ser empregada do hotel e seus filhos, hóspedes ou inquilinos.

Após ouvir as duas histórias, perguntei ao grupo: por que vocês acham que adolescentes dessa turma veem a casa como uma prisão e uma pessoa adulta viu a casa como um hotel de adolescentes no qual ela era empregada?

O grupo levantou muitas hipóteses, mas a que achei mais interessante foi a de uma menina que dizia acreditar que a convivência em casa era tão complicada e dolorida tanto para adolescentes quanto para seus parentes, que parecia que ambos estavam numa posição de incômodo, achando que o outro é que exercia algum poder ou tinha alguma vantagem.

Segundo essa hipótese levantada pela menina, o adolescente acreditava que a mãe carcereira tinha poder sobre ele, enquanto a mãe da outra história achava que o adolescente hóspede é quem tinha poder sobre ela.

Essas duas histórias foram tão interessantes para mim porque trouxeram o ponto de vista de adolescentes e pessoas adultas sobre a convivência em casa. No fim das contas, sabemos que nenhuma delas retrata com fidelidade a real situação entre pessoas adultas e adolescentes.

Numa relação parental saudável, adolescentes não são clientes de um hotel, nem as pessoas adultas são carcereiras. Numa relação saudável, pessoas adultas e adolescentes têm possibilidade de externalizar seus contentamentos e incômodos no ambiente doméstico, com objetivo de construir o bem-estar.

Em tempo, quero deixar aqui a sugestão de um curta-metragem de animação baseado num conto de Edgar Allan Poe chamado "Vincent".

*Nome fictício.