Topo

Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

De Francisca para Francisco: o que a posse de Lula tem a ver com a gente?

Francisco Carlos, menino negro de 10 anos que entregou faixa a Lula no lugar de Bolsonaro - Divulgação/PT
Francisco Carlos, menino negro de 10 anos que entregou faixa a Lula no lugar de Bolsonaro Imagem: Divulgação/PT

Colunista do UOL

06/01/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Oi Francisco Carlos, aqui é Elânia Francisca.

Escrevo esse texto especialmente para você, no desejo de que esteja bem aí em Itaquera.

Eu moro em outro extremo da cidade de São Paulo, num lugar chamado Grajaú. Você conhece?

Eu moro aqui, mas nasci numa cidade do meio rural no estado do Espírito Santo e vim para São Paulo muito novinha. Passei praticamente toda a infância e a adolescência no Grajaú e eu gosto muito desse lugar.

Resolvi enviar essa carta porque desde que o vi na posse do presidente Lula fiquei muito empolgada com a representatividade infantojuvenil negra que você protagonizou naquele dia.

Você, enquanto menino preto periférico e atleta, deve saber o quanto as diversas infâncias precisam ser ouvidas e vistas pelo Brasil todo.

Foi muito bonito ver você na posse, fiquei realmente emocionada.

Certamente você se lembra do discurso do presidente, né?

Ele falou coisas que realmente me tocaram. Eu me vi no discurso dele em vários momentos. O presidente falou sobre a fome e parecia que estava contando a história da minha infância.

Eu vim com minha família para São Paulo no final dos anos 1980, muito novinha, e aqui passamos muita fome, muita fome mesmo. Lembro-me de minha mãe acordando cedo para pegar comida no lixo dos supermercados e de meu pai levar a gente para ajudá-lo a revirar as caçambas de caminhões de frutas estragadas para termos o que comer durante a semana.

Qual sua comida preferida, Francisco?

Os anos 1980 e 1990 foram tempos muito difíceis e, por vezes, minha família e eu acreditávamos que a fome era fruto de um castigo de Deus ou de nossa falta de esforço. Mas o que teríamos feito de mal a Deus para sofrer tanto? E minha família trabalhava tanto que é impossível dizer que não havia esforço.

Eu tinha 6 anos, minha irmã tinha 2 e a caçula era bebezinho ainda. Quem castigaria crianças lhes privando de comer?

Hoje sabemos que nenhum divino quer nos ver tristes e que, seja lá qual for sua religiosidade, o amor é a direção que toda espiritualidade deve semear, não o ódio.

Aliás, hoje eu sou uma pessoa de candomblé, Francisco. E é tão lindo ser de axé!

Francisco, você vive sua escolha religiosa com liberdade e segurança?

Sabe, eu sou a primeira pessoa da minha família a ir tão longe nos estudos. Antes de mim, ninguém na família tinha concluído sequer o Ensino Fundamental.

Quando viemos para São Paulo, minha família teve que dormir três dias na frente da escola para conseguir uma vaga para minhas irmãs e eu estudarmos. Hoje, ter vaga na escola garantida é um direito humano importante e eu estou pertinho de concluir meu doutorado. Eu vou ser doutora, Francisco. A primeira doutora de minha família todinha, acredita?

Em que série você está, Francisco? Você gosta da escola em que estuda?

Quero muito que minha avó possa presenciar o momento em que me tornarei doutora. Ela é uma idosa preta retinta que tem 100 anos de idade. Vó nasceu em 1922, você consegue imaginar o quanto isso é bonito, Francisco?

A expectativa de vida para uma mulher negra no Brasil é de 69 anos. Então é muito importante ver nossas mais velhas ultrapassando essa idade com saúde e alegria.

Quantos anos tem sua mais velha, Francisco? Ela está saudável e feliz?

Para finalizar minha carta, quero dizer que a minha infância se alegra com a infância que você representa hoje, Francisco. Sei que ainda há muitas crianças vivendo a infância que eu tive, passando fome e tendo dificuldades para acessar direitos básico. Isso tem que acabar!

Tenho certeza que você, eu e todas as pessoas que acreditam na potência da infância e adolescência, seguiremos caminhando e defendendo o direito à dignidade.

Desejo paz na sua vida, fé na humanidade e força na caminhada.

Respeitosamente te saúdo, pequeno irmão!

Agradeço pela sua existência.