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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para falar de afetividades é preciso considerar a neurodiversidade

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

13/01/2023 04h00

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Há algum tempo eu tenho me dedicado aos estudos sobre afetividade, que é um elemento importante da sexualidade. Dentro das reflexões sobre o tema, eu estudo especificamente as afetividades na adolescência.

Tenho refletido sobre o quanto é importante a intersecção de gênero e raça nessas discussões —inclusive, minha dissertação de mestrado foi sobre afetividades de adolescentes negras periféricas, e nela faço uma análise dos afetos considerando a intersecção raça, classe, gênero. Contudo, recentemente me dei conta de que meus estudos não estavam considerando um elemento muito importante da vida, que é a neurodiversidade.

Neurodiversidade é um termo usado para nos referirmos a grande diversidade de variações no cérebro de cada pessoa. Isso quer dizer que somos pessoas neurodiversas, porque cada um tem um modo de entender o mundo, socializar, aprender e expressar afetos. Nenhuma pessoa socializa exatamente igual a outra, então todo mundo é neurodiverso.

Dentro da neurodiversidade existem as pessoas neurotípicas, que estão dentro de uma média "padrão" para o desenvolvimento humano (muitas aspas na palavra "padrão"), e as pessoas neuroatípicas, que não estão nessa média. É importante dizer que estar dentro ou fora dessa média não tem nada a ver com estar doente ou estar saudável, e sim que somos diferentes e precisamos conhecer as diferenças (internas e externas) para conviver com respeito e sem apagamento social.

Pois bem, acontece que nossa sociedade trata as características neurotípicas (que estão na média) como se elas fossem a única forma válida de experimentar o mundo, então quando alguém não segue esse padrão, tratamos a pessoa como "anormal", e a partir daí definimos que ela precisa se adequar ao que é esperado. Isso gera muita invisibilização.

No campo dos afetos e das expressões de afeto, também estabelecemos um padrão neurotípico. Dizemos que quem não gosta de abraço é uma pessoa estranha, que quem não faz amizades é "antissocial", que quem desmarca encontros não tem respeito pelos outros. Quando, na verdade, estamos reproduzindo um discurso muito superficial sobre a grande diversidade que existe nas formas de demonstrar carinho, afeto.

Enquanto o padrão neurotípico for usado para medir a intensidade dos afetos, haverá de um lado a frustração de alguém que espera certo padrão de demonstração de carinho, e do outro uma pessoa ansiosa por não alcançar o padrão exigido.

Precisamos aprender a respeitar a neurodiversidade, porque fazemos parte dela.

Não, nem todo mundo gosta de abraço e isso não necessariamente é trauma ou sinal de que a pessoa esteja dentro do espectro autista. Aliás, sendo um espectro, são muitas as formas de ser uma pessoa com autismo e existem pessoas com autismo que gostam de abraços. Eu não sou uma pessoa com autismo e não gosto muito de abraços, por exemplo.

Não, nem todo mundo faz amizades rapidamente ou marca encontros com facilidade, e isso não quer dizer que ela não goste de estar com você ou que seja "antissocial".

Não, nem todo mundo chora quando vive um sofrimento intenso e isso não é frieza ou falta de capacidade de demonstrar sentimentos. Temos um corpo todo para sentir, então por que achar que somente lágrimas expressam dor? Às vezes é o dedinho do pé que mostra nosso sofrimento, às vezes é o olho tremendo ou a dor de barriga.

Nós, enquanto sociedade, seguimos um padrão de demonstração de afeto que hierarquiza as formas de viver e demonstrar carinho/cuidado, a ponto de dizermos para alguém: Você não sabe demonstrar sentimentos, porque você não procura ajuda para aprender a mostrar o que sente?
Quando, em alguns momentos, talvez sejamos nós que não conseguimos perceber e receber afeto por vias que não estejam dentro desse padrão neurotípico.

Diante disso, que tal pensarmos no seguinte:

Nossas insatisfações nas relações (pessoais, profissionais, parentais) têm a ver com uma real indisposição da outra pessoa para uma construção afetiva ou, em alguma medida, está relacionada à nossa indisponibilidade para acolher demonstrações de afeto que fogem do padrão estabelecido?