Topo

Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Direitos humanos, cidadania e juventudes: não há vantagens em ser invisível

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

10/02/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

No início dos anos 1990, quando eu era criança e tinha por volta de sete anos de idade, minha professora perguntou à turma: "Se vocês pudessem ter um superpoder, qual seria?". Eu, sem pestanejar, respondi: "Eu seria invisível!".

Sendo invisível, ninguém me veria e, sem ser vista, eu acreditava que poderia entrar e sair dos lugares na maior tranquilidade e calma do mundo. Eu poderia participar de conversas, ficando bem calada e ouvindo tudinho que as pessoas estavam dizendo, sem que nem percebessem minha presença.

Invisível, eu poderia ir e vir, eu teria paz, porque ninguém conseguiria me encontrar para me incomodar. Ah, como eu queria ser invisível. E a ideia da invisibilidade me parecia muito boa. Um privilégio!

Conforme fui crescendo, percebi que esse "ser invisível" existia, de fato, mas era uma invisibilidade muito específica. Eu, e mais adolescentes como eu, ocupávamos um lugar de invisibilidade social que, ao contrário do que acreditei na infância, não me permitia entrar e sair dos lugares.

Pelo contrário, a invisibilidade me privava da possibilidade de ocupar a rua, os espaços de lazer e cultura que eu tanto queria estar e, principalmente, de ser escolhida para afetos como amor e amizade.

Eu passei toda minha infância, adolescência e juventude sendo moradora de um bairro periférico da cidade de São Paulo, localizado no distrito do Grajaú, chamado de Favela do Mandiocal. O local recebia esse nome porque a ocupação em que morávamos era antes uma plantação de mandioca que faliu. A terra ficou improdutiva, o dono não pagava os impostos, então minha família, e outras tantas, ocuparam o lugar para fins de moradia.

Sendo uma menina favelada, eu já era a invisível e não entendia muito bem o que isso significava. Eu e minhas vizinhas adolescentes já éramos tratadas, fora de nosso bairro, como corpos que não deveriam existir.

Durante toda a adolescência eu realmente acreditei que éramos violentas e perigosas, mesmo no fundo sabendo que não éramos nada daquilo. Acreditei em falsas notícias de jornal sobre meu bairro, sobre o povo favelado e, num movimento interno muito esquisito, duvidei de minha própria realidade.

Sim, a favela tem muitas questões, mas eu não fazia ideia de que essas questões existiam porque o Estado se fazia presente em nosso bairro por meio da violação de nossos direitos básicos, e violência de quem deveria nos proteger.

Que tipo de infância eu teria se, de fato, fosse vista como sujeita de direitos? Que adolescente eu teria me tornado se fosse vista pelas políticas voltadas a meninas, meninos e menines de periferia?

Certamente, em minha juventude, eu teria vivenciado um fortalecimento emocional maior do que tive e lidaria melhor com as demandas da vida.

Escrevo esses trechos de minha vivência, inspirada no que Conceição Evaristo conceituou como "escrevivência". Entendo que para pessoas negras e periféricas contar nossas histórias nunca é um ato de autopromoção ou narcisismo, mas uma forma de resistência e autocuidado.

Contar a história de minha infância e juventude me ajuda a compreender os avanços e retrocessos vivenciados no Brasil, sobretudo nas quebradas do país. Ajuda a perceber que a juventude negra periférica e indígena segue vivendo, ainda hoje no Brasil, um processo de invisibilização que eu também vivi, que é expresso no descaso e desatenção às demandas básicas de lazer, esporte, cultura, saúde, moradia e dignidade.

Jovens em suas interseccionalidades avançaram na luta, mas ainda vivem fragilidades geradas pelo racismo, machismo, capacitismo e LGBTQIA+fobia.

A juventude de quebrada não se satisfaz com o lugar de invisibilidade, e busca, entre outras formas de expressão, fazer da arte seu ato de resistência e existência. Não interessa mais à juventude brasileira o lugar de não lugar, de não visível, de apenas sobrevivência. A juventude quer viver e isso engloba prazer de ser quem é, festejar, trocar de afetos e rir sem medo.

Ser visível, fazer-se visível e construir a visibilidade como forma de existir.