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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crianças negras, bonecas brancas: por que se ver nos brinquedos importa?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

07/04/2023 04h00

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"É no brinquedo que a criança externaliza suas questões e expõe seus pensamentos. Como uma criança negra vai externalizar suas questões se ela nem existe ou nem se vê na prateleira de brinquedos?"

Essa foi a frase que enviei a um amigo durante uma conversa de WhatsApp, ao constatar que na prateleira da brinquedoteca de um serviço havia 29 bonecas brancas de olhos azuis e apenas uma boneca negra. O serviço em questão é um espaço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes, onde moram 14 crianças, sendo 13 negras e apenas 1 branca.

Em meu trabalho como psicóloga, capacitadora e consultora nas temáticas de gênero e sexualidade, busco ter um olhar interseccional (considerando ao menos raça, classe, gênero e faixa etária), em sintonia com a garantia ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.

Um dos pilares que preso muito em meu fazer diário profissional é pensar sobre o amor. E quem me ajuda muito nisso é a autora bell hooks —sugiro que você leia "Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas".

Amar a própria existência é um passo fundamental para o autocuidado. Eu me cuido porque me amo e é por isso que o autoamor é tão importante. Amar-se não é só enxergar beleza física em si, mas saber que existe e que sua existência é valorizada socialmente.

Crianças brancas aprendem que sua existência é valorizada socialmente quando cotidianamente veem sua cor representada na pessoa que apresenta a maioria dos programas, vendo pessoas brancas como ela sendo influencers ou administrando grandes negócios. Ao adentrar num espaço de brincadeiras, a criança branca se vê estampada nas caixas de jogos e percebe sua presença em bonecas bebês.

Obviamente não estou sugerindo que crianças brancas não sejam representadas em brinquedos, mas estou propondo que olhemos para as crianças negras e a ausência de representação de sua existência nos espaços de brincadeiras e os efeitos disso.

Mario Quintana tem uma frase que diz "A criança não brinca de brincar, a criança brinca de verdade". Dessa forma, quando uma criança está brincando, ela está externalizando —e automaticamente nos dando acesso— ao seu universo interno, seu mundo interior.

Quando uma criança branca vê bonecas brancas, ela consegue se enxergar ali e tecer histórias brincantes sobre sua própria vida em primeira pessoa.

"Olha mãe, essa é minha filha", uma criança branca pode dizer ao ver uma boneca branca, mas o que uma criança negra pode dizer ao cuidar de um bebê brinquedo que em nada se parece com ela?

Ter bonecas negras não se trata apenas de ter um brinquedo "diferente" para disponibilizar. Ter bonecas negras é possibilitar que a criança negra se veja, e assim possa acessar suas próprias questões sem estar no lugar de "outro", mas ocupar e se sentir bem no lugar de "eu".

Quando uma criança negra brinca com bonecas negras, ela pode criar situações em que ela é protagonista de fato. Ela pode ser a mãe, o pai do bebê ali em questão. Ela pode ser o próprio bebê

"Faz de conta que essa sou eu bebezinha..."

É importante sabermos que o brincar é a linguagem, sendo assim, é uma forma de comunicação muito valiosa da criança. Então quando uma criança negra não tem brinquedos que se pareçam com ela na estante ou na caixa de brinquedos, é possível que ela receba essa ausência como apagamento de sua própria existência.

Há uma frase muito dita por adolescentes que, embora eu esteja falando sobre crianças, vou citar aqui.

A frase é: Quem não é visto não é lembrado".

Então não é justo que as crianças negras, ao não se verem nos brinquedos, tornem-se esquecidas por nós, pessoas adultas.