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Gustavo Cabral

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

"Misturar" vacinas: como surgiu essa ideia? A tática é segura e eficaz?

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Imagem: Getty Images

Colunista do VivaBem

23/08/2021 04h00

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Muitas pessoas ficaram cheias de dúvidas e preocupações ao saber que o Ministério da Saúde liberou que, na segunda dose, seja aplicada a vacina da Pfizer em quem recebeu a AstraZeneca na primeira dose —um procedimento que chamamos de intercâmbio de vacinas.

Primeiramente, quero chamar atenção para o fato de que, normalmente, as vacinas não são intercambiáveis. Portanto, o padrão recomendado é que quem toma a primeira dose de uma determinada vacina conclua a vacinação com o mesmo imunizante, para que se obtenha os resultados esperados e comprovados cientificamente.

A boa notícia é que temos bons trabalhos publicados, que mostram excelentes dados sobre o intercâmbio de vacinas contra a covid-19—mas que não necessariamente são totalmente conclusivos, pois na ciência sempre buscamos algo a mais para garantir a segurança social e científica.

É importante frisar que, apesar de a vacina da Pfizer e da AstraZeneca terem tecnologias diferentes, elas usam a mesma parte do coronavírus para estimular o sistema imunológico, que é a proteína "Spike", a coroazinha que recobre o vírus e "funciona" como chave da entrada dele em nossas células.

Um estudo alemão, publicado na Nature Medicine, uma das melhores revistas científicas do planeta, demonstrou que em indivíduos adultos e saudáveis, o intercâmbio de vacinas foi capaz de induzir alta produção de anticorpos IgG contra a proteína "Spike", capazes de neutralizar o vírus. Houve também uma significante produção de células T, comparável em magnitude à aplicação de duas doses da vacina de uma mesma marca.

O estudo ainda relatou que, além da forte resposta imunológica, nosso corpo manteve uma tolerância ao esquema de vacinação com duas vacinas de tecnologias diferentes dentro dos parâmetros do esquema com duas doses de uma mesma marca. Ou seja, o intercâmbio de imunizantes não gera efeitos colaterais graves nem um desequilíbrio do sistema imunológico.

Outro estudo que vale a pena citar é um dinamarquês, publicado recentemente, que avaliou no período de fevereiro a junho deste ano os efeitos do intercâmbio da vacina da AstraZeneca com a da Pfizer. Com a mudança do imunizante, a vacinação foi capaz de gerar uma proteção de 88%, um número menor do que o da proteção induzida pela vacinação com duas doses da Pfizer, porém maior do que com a aplicação de duas doses da AstraZeneca.

Além desses, há outros estudos publicados em revistas bem-conceituadas, que têm um padrão de resultados muito similares. Portanto, podemos dizer que o intercâmbio de vacinas gera uma excelente resposta imunológica, sem causar efeitos colaterais graves.

Porém, como citei anteriormente, apesar de serem bons estudos, não são conclusivos para levar ao uso global do esquema sem uma atenção científica. Isso porque, por exemplo, esses estudos estão sendo feitos em locais em que a população é predominantemente branca, como a Alemanha e a Dinamarca, onde não uma diversidade racial como no Brasil.

Por isso, apesar de ser possível fazer o intercâmbio em situação de exceção, é importante manter a atenção e acompanhamento ao aplicar o esquema aqui no Brasil, além de sempre dar preferência à vacinação homóloga, até que obtenhamos mais resultados.

Como surgiu a ideia de usar duas vacinas diferentes?

Saiba que não foi uma ideia brasileira. A ideia de intercambiar vacinas surgiu quando muitos países europeus suspenderam o uso da AstraZeneca após a possível associação dessa vacinação com o aparecimento de casos raros de trombose.

Quando o imunizante foi suspenso, surgiu um problema: muitas pessoas já tinham sido vacinadas com a primeira dose da AstraZeneca e precisariam receber a dose de reforço. Então, a solução foi estudar a intercambialidade vacinal, para suprir a necessidade da vacinação completa da população.

E esses estudos seguiram mesmo depois de a vacina da AstraZeneca voltar a ser autorizada em alguns países em que estava suspensa, como na Dinamarca, na Alemanha, na França etc., para se ter conhecimento sobre o assunto.

Agora vamos focar no Brasil, pois as questões por aqui foram outras, que ocorreram por causa da irresponsabilidade do Ministério da Saúde. Nosso governo autorizou a imunização de grávidas com a AstraZeneca (explicarei a seguir porque isso foi irresponsável) e deixou faltar o imunizante da AstraZeneca, que muitas pessoas ainda precisam receber a segunda dose.

A vacinação de grávidas com a AstraZeneca não deveria ter acontecido pois não havia estudos e dados suficientes para expor essas mulheres a uma vacina que usa uma tecnologia de vetor viral —ou seja, um "vírus vivo" enfraquecido, o adenovírus, causador de resfriado, que carrega um "pedaço" do coronavírus para estimular o sistema imunológico.

Quando olhamos para as vacinas proibidas para gestantes, que são a tríplice viral, a contra a varicela e a contra febre amarela, percebemos que todas usam a tecnologia do "vírus vivo" atenuado/enfraquecido. Isso já deveria servir de alerta para não liberar a AstraZeneca para grávidas.

Não estou aqui querendo dizer que as gestantes que foram imunizadas com a AstraZeneca terão algum problema. Só quero chamar a atenção para seguirmos os rigores científicos, para termos mais segurança ao recomendar algo e não expor a sociedade a mais problemas físicos e psicológicos, devido ao medo e preocupações que isso gera.

E acho que não preciso explicar muito por que é irresponsabilidade deixar faltar uma vacina que ainda precisa ter sua segunda dose aplicada em milhares de pessoas, né? Agora que as besteiras já foram feitas, repito, devemos manter a atenção e acompanhar bem o esquema de intercâmbio aqui no Brasil, além de sempre dar preferência à vacinação homóloga, até que obtenhamos mais resultados sobre o outro esquema.