Gustavo Cabral

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Opinião

Esquece muitas palavras? Quando é algo normal e quando pode ser afasia?

Vejo um número cada vez maior de pessoas se queixando de não se lembrarem de palavras que "estavam na ponta da língua" ou com dificuldade de conduzir uma conversa fluente, sem se perder no meio do raciocínio.

Vivemos num momento no qual o excesso de informação (ou desinformação) inunda os nossos dias e sobrecarrega a nossa mente. Nosso fiel companheiro passou a ser o celular, que nos permite ter acesso a um conhecimento ilimitado na palma das nossas mãos.

Isso sem falar no nosso elevado grau de auto-exigência. Com uma necessidade constante de alto desempenho, precisamos ser excepcionais em todas as esferas da nossa vida, e assim nos tornamos super-heróis que sucumbem em uma sociedade do cansaço e da fadiga intelectual.

O resultado disso é um impacto significativo em nossa saúde mental, assim como nas funções cognitivas, acarretando em problemas inesperados como esquecimentos, alterações nas nossas funções de linguagem e, inexoravelmente, comprometendo a expressão verbal.

Porém, além do estresse e da sobrecarga mental, existem condições neurológicas que afetam as regiões cerebrais responsáveis pela produção da fala e merecem uma avaliação cuidadosa por um especialista.

Uma questão bastante prevalente nesse contexto é a afasia, que se manifesta como o comprometimento da habilidade de compreender e de se expressar de forma coerente.

A afasia é comumente associada a danos cerebrais, como os que ocorrem em acidentes vasculares cerebrais (AVC), tumores e lesões traumáticas, e pode se manifestar de diversas maneiras, desde dificuldade no planejamento da articulação das palavras até a incapacidade de compreender por meio da fala ou da escrita.

O tratamento usualmente foca na causa da lesão ao encéfalo e uma combinação de terapia da fala, técnicas de compensação ou adaptações e apoio emocional, com o objetivo de melhora da comunicação e da qualidade de vida dos indivíduos afetados.

Para explicar melhor o problema, conversei com René Gleizer, médico neurologista especialista em neurologia da cognição e do comportamento pelo Hospital das Clínicas da USP.

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Quais são as causas mais comuns de afasia?

O neurologista René Gleizer explica que a linguagem é a capacidade de expressar nossos pensamentos e compartilhar nossas ideias utilizando símbolos, que são as palavras, por meio da fala, da escrita ou por gestos. Quando perdemos essa capacidade total ou parcialmente, gerando dificuldade de compreensão ou expressão da linguagem, chamamos de afasia.

Entre as causas possíveis estão lesões que acometam a área responsável pela linguagem, ou seja, especificamente a rede neuronal perisilviana corti-subcortical no hemisfério cerebral dominante, que na maioria dos indivíduos está localizada no lado esquerdo do encéfalo.

"Quando a instalação dos sintomas ocorre de forma aguda e repentina, de característica transitória ou recorrente, podemos pensar em causas vasculares, como AVC ou ataque isquêmico transitório (AIT), crise epiléptica focal ou até mesmo sintomas de aura relacionados a crises de enxaqueca", afirmou Gleizer.

Quando a dificuldade com a linguagem ocorre de forma lenta e progressiva, o neurologista diz que é preciso considerar a possibilidade de doenças neurodegenerativas, como as afasias primariamente progressivas (APP) ou até mesmo Alzheimer.

Quais doenças levam à afasia?

De acordo com Gleizer, as doenças neurodegenerativas que geralmente apresentam afasia como principal sintoma desde o início são as afasias primariamente progressivas (APP). Esse conjunto de patologias ganhou notoriedade diante da suspeita diagnóstica do ator Bruce Willis e do cartunista Angeli.

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As APP costumam acometer indivíduos com idade entre 60 e 80 anos —e os pacientes costumam ter uma sobrevida média de 10 anos. Elas são divididas classicamente em três subtipos.

APP Logopênica Caracteriza-se por uma dificuldade em encontrar palavras, como se estivessem na "ponta da língua", porém com preservação do conhecimento semântico, ou seja, o paciente sabe do que se trata, mas não consegue falar o nome preciso e acaba descrevendo-a. "Um exemplo seria não nomear a caneta, mas reconhecê-la como tal, informar suas características e saber a sua utilidade", explica Gleizer. A condição pode ser uma forma de apresentação de Alzheimer. Mas, nesse caso, junto com a afasia ocorre um prejuízo em outros domínios cognitivos, como a memória ou funções viso espaciais.

APP semântica A pessoa perde a capacidade não só de nomear, como também de reconhecer o conceito e o significado de palavras e objetos. "Por exemplo: não sabe o que é uma caneta, a qual categoria o objeto pertence nem para o que ele serve", descreve o neurologista.

APP não fluente ou agramática O paciente perde a fluidez da fala, que fica telegráfica. Apresenta também incapacidade de respeitar as leis gramaticais —com erros sintáticos nas frases e pobreza de elementos gramaticais de ligação— e demonstra grave prejuízo da escrita. Tem ainda dificuldade na articulação dos fonemas, que se manifesta como uma fala "gaguejante".

Independente do subtipo, os pacientes com AAP podem evoluir ao longo dos anos com sintomas neuropsiquiátricos, como alteração comportamental, agressividade, apatia ou ansiedade René Gleizer, neurologista

Como diagnosticar

Gleizer afirma que a forma de diagnosticar estas patologias começa pela apresentação clínica e a história compatível com os sintomas descritos. Em seguida, realiza-se uma avaliação neurológica, cognitiva e da linguagem pormenorizada. Por fim, são solicitados exames complementares com a finalidade de afastar diagnósticos diferenciais e confirmar nossa hipótese.

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Dentre os exames mais importantes utilizados estão os de neuroimagem estrutural, como a ressonância magnética, ou exames de neuroimagem funcional que avaliam o metabolismo cerebral, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET).

"Para casos muito selecionados, podemos incluir teste de biomarcadores com coleta de líquor (líquido que envolve o sistema nervoso central)", diz o médico.

É um esquecimento normal ou afasia?

Muitas vezes é difícil fazer essa diferenciação, de acordo com o neurologista do comportamento pelo Hospital das Clínicas da USP.

"Existem indivíduos que sempre apresentaram dificuldade para recordar nomes, por uma predisposição desde a infância ou um déficit de atenção, por exemplo, e esse sintoma pode piorar levemente com o envelhecimento, mas ainda sim ser considerado não patológico."

Outras pessoas, todavia, podem ter prejuízo da linguagem por passarem por momentos delicados da vida, decorrente de sobrecarga emocional, estresse, insônia, depressão ou ansiedade, condições que atrapalham o adequado funcionamento cognitivo.

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"Entretanto, quando o prejuízo da linguagem surge sem um motivo aparente e progride ao longo do tempo, gerando comprometimento da funcionalidade, sem dúvida é necessário investigar uma causa estrutural neurológica subjacente", orienta o médico.

Como evitar o esquecimento de palavras e manter a saúde cognitiva?

Diante da suspeita de qualquer doença neurodegenerativa, é fundamental manter a mente e o corpo ativos.

Realize atividades que estimulam a cognição, como leitura, jogos de tabuleiro ou digitais, tocar instrumentos musicais e fazer palavras cruzadas.

Quanto à prática de atividade física, a recomendação é realizar ao menos 150 minutos de exercícios por semana.

É importante ainda ter acompanhamento médico para prevenir, identificar precocemente e tratar doenças ou condições que secundariamente podem causar danos neuronais, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, deficiência de vitamina B12, hipotireoidismo ou colesterol elevado.

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Outros profissionais que são fundamentais no processo diagnóstico, reabilitação e cuidado destes pacientes são os fonoaudiologistas e os terapeutas ocupacionais.

Infelizmente diante do diagnóstico de APP, ainda não existe cura e os tratamentos são sintomáticos com a finalidade de melhorar a qualidade de vida dos pacientes René Gleizer, neurologista

Por fim, não podemos esquecer da necessidade de orientação e treinamento, assim como suporte emocional, aos cuidadores e familiares, que são um dos principais pilares do cuidado aos pacientes com afasia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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