Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Aumento do consumo de álcool na pandemia pode ter efeito dominó
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A pandemia tem aumentado o consumo de álcool em diversas partes do mundo e os efeitos dessa onda, no longo prazo, ainda são pouco conhecidos e já preocupam. Entre as mulheres, a situação pode ser ainda mais grave.
Mesmo antes do novo coronavírus surgir, o consumo de álcool nos EUA, por exemplo, já vinha aumentando. Uma reportagem publicada na última semana na revista The New York Times Magazine traz dados e pesquisas sobre esse cenário.
De acordo com um estudo do NIAA (Instituto Nacional de Abuso de Álcool e de Alcoolismo) divulgado no ano passado, o consumo per capita de álcool aumentou 8% entre 1999 e 2017 no país, e o número de mortes relacionadas ao álcool dobrou no mesmo período, muitas delas causadas por doenças hepáticas.
Mulheres bebendo mais
Entre as mulheres, os dados eram ainda mais preocupantes e o aumento do consumo foi da ordem de 10%, sendo que o padrão chamado de "binge drinking" (beber quatro ou mais drinques em menos de duas horas) cresceu assustadores 23%. Orientações atuais apontam que o consumo considerado moderado é de apenas uma dose por dia para mulheres e de duas para os homens.
O consumo mais elevado entre as mulheres preocupa porque o corpo delas é mais sensível que o dos homens a doses similares de bebida alcoólica, com maior risco de se envolver em acidentes e de desenvolver doenças crônicas no fígado e coração, além de alguns tipos de câncer. Questões biológicas como distribuição de gordura e de água no organismo e uma menor quantidade de enzimas envolvidas no processo de degradação do álcool explicam essa maior sensibilidade feminina.
Pandemia: busca de alívio
Com a pandemia, o aumento da ingestão de álcool deixou os especialistas em alerta. Pesquisa de dezembro de 2020 da Escola de Saúde Publica da Universidade de Johns Hopkins e da Universidade de Maryland apontou que 60% das pessoas que responderam a uma enquete online relataram que seu consumo de álcool havia aumentado. Para a metade delas, a principal causa do aumento foi o estresse —quem se sentia muito ou extremamente estressado bebeu mais em mais dias da semana.
Outro estudo de fevereiro de 2021 da Associação Americana de Psicologia aponta que 25% dos adultos estão bebendo mais para lidar com o estresse da pandemia. O estresse é uma causa conhecida de maior consumo de álcool, mas a pandemia pode estar elevando essa relação de "beber para suportar" a outro patamar.
A questão é que beber para aliviar uma emoção negativa aumenta o risco de se beber mal e de se aumentar progressivamente a ingestão de álcool. E nem sempre é fácil perceber quando se migra de um padrão de uso recreativo (beber por prazer, eventualmente) para um modo de consumo em que, no fundo, a pessoa está buscando um alívio para alguma dificuldade, como fica claro no excelente "Druk - Mais uma rodada", vencedor do Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro desse ano. Nele, um grupo de quatro amigos combina de beber todos os dias para ser mais feliz, mas o limite entre liberdade de escolha e correr riscos é mais tênue do que imaginam.
Beber para aliviar a ansiedade pode interferir nos mecanismos de controle da amígdala (área do cérebro responsável pelas respostas do nosso corpo às situações de ameaça, reais ou imaginárias), fazendo com que a pessoa precise de doses cada vez mais frequentes para lidar com o estresse. Se na pandemia viver sob tensão é uma constante para muitos, com maior risco de enfrentarmos situações de esgotamento extremo (burnout), há um risco concreto de aumento no consumo.
No Brasil
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, divulgados no final de 2020 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontavam um crescimento de 23,9% no consumo de álcool em maiores de 18 anos em relação a 2013. Homens bebiam mais que mulheres, mas havia um aumento de 12,9% entre as mulheres no período.
Pesquisa da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), divulgada também no final do último ano, mostrava um aumento de 42% no consumo de álcool no Brasil durante a pandemia. A mesma pesquisa apontava que quadros graves de ansiedade traziam um risco 73% maior de se beber com maior frequência.
Para piorar o cenário, as crianças passaram mais tempo em casa e puderam assistir com maior frequência ao consumo de álcool de seus pais, o que pode trazer consequências imprevisíveis no futuro para seu próprio padrão de consumo. Aqui no VivaBem, já comentei outro agravante para o consumo de álcool pelos mais jovens, que é o desmonte dos projetos de prevenção ao álcool e drogas nas escolas nos últimos anos.
Dura rotina em casa
Para as mulheres, o esgotamento por acúmulo de atividades e responsabilidades pode ser ainda mais evidente. Não é à toa que, da mesma forma que elas estavam sob maior risco de beber mais na pré-pandemia, essa questão agora parece ser ainda mais preocupante.
Estudos recentes publicados em periódicos médicos na área de comportamentos aditivos no final do ano passado nos EUA apontavam que as mulheres na pandemia tiveram um aumento mais importante que os homens em padrões de consumo excessivo de álcool em resposta ao estresse. Cuidados com os filhos e o papel ativo no aprendizado deles, incertezas sobre o futuro, insegurança financeira e divisão desigual das tarefas domésticas são algumas das possibilidades para explicar o fenômeno.
Resposta a tragédias
A reportagem do The New York Times Magazine traz um ponto bastante interessante: depois de grandes catástrofes naturais ou de eventos traumáticos (como guerras e ataques terroristas), as pessoas tendem a beber mais. Mas os piores efeitos podem ser percebidos, às vezes, só dois ou três anos depois. Ou seja, um efeito dominó pode ser desencadeado daqui para frente.
Com a covid-19, o impacto nas emoções e no consumo de álcool no longo prazo ainda é incerto, já que a exposição ao estresse tem sido prolongada e potencializada pelos efeitos do isolamento social. Há também uma distância maior das redes de apoio e dos serviços de saúde.
Em paralelo, a compra de álcool por delivery e o "beber em casa" explodiram. Com isso, o risco de se beber sem tantos controles cresceu. Junto com esse fenômeno, podem surgir riscos sociais importantes como abuso sexual, violência doméstica e negligência nos cuidados com as crianças.
Para tentar reduzir riscos seria importante que os serviços de saúde e grupos de apoio se valessem dos avanços tecnológicos que surgiram nesse último ano e usassem mais as telas para diagnosticar precocemente problemas com o consumo de álcool e fornecer suporte para quem precisa. Um trabalho de prevenção, com campanhas educativas alertando sobre esses riscos, usando redes sociais por exemplo, também poderia ser útil. No nível individual, seria importante um olhar mais atento de cada um de nós sobre nosso próprio comportamento e sobre familiares e amigos que podem estar enfrentando dificuldades. Antecipar, prevenir e alertar é sempre melhor do que ter que tratar e remediar!
Se quiser saber mais sobre álcool e saúde, cheque meu site https://doutorjairo.uol.com.br/.
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