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Jairo Bouer

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O que pode levar um jovem a cometer um massacre?

Um jovem de 18 anos invadiu a creche Aquarela, em Saudades (SC), e matou com um facão três crianças e duas mulheres  - Divulgação/Prefeitura de Saudades (SC)
Um jovem de 18 anos invadiu a creche Aquarela, em Saudades (SC), e matou com um facão três crianças e duas mulheres Imagem: Divulgação/Prefeitura de Saudades (SC)

Colunista do VivaBem

07/05/2021 04h00

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O que poderia levar um jovem de 18 anos, aparentemente calmo e reservado, a cometer um crime bárbaro como o que aconteceu na creche Aquarela, em Saudades, município de 10 mil habitantes no extremo oeste de Santa Catarina?

Pouco se sabe até esse ponto se haveria alguma motivação para o crime cometido na última terça (4). O garoto não tinha antecedentes criminais nem passagens pela polícia. No dia da chacina havia ido ao trabalho e, no intervalo, pegou sua bicicleta e foi até a escolinha, carregando duas armas brancas.

Introversão

Segundo o delegado da Polícia Civil Jerônimo Marçal, as poucas informações sobre a personalidade do garoto Fabiano Kipper Mai, relatadas por pessoas próximas ao jovem, sugerem que o rapaz era visto como "problemático", introspectivo, sofria bullying, vinha maltratando animais e passava muito tempo no quarto, em frente ao computador e jogando games violentos. Mas nada que fugisse claramente da "normalidade" em seu comportamento cotidiano.

Jovens mais reservados, que vivem isolados (ainda mais na pandemia), fixados em suas múltiplas telas, passando horas a fio envolvidos em games de aventura e violência não são exatamente uma novidade nessa geração. Por si só, esses padrões não explicam um arroubo de violência e agressividade extremas como as que levaram ao assassinato de três crianças pequenas e duas mulheres de 20 e 30 anos.

O garoto usou uma espécie de adaga para desferir seus golpes. A tragédia só não foi maior porque ele foi contido por um pedreiro e um metalúrgico que chegaram ao local. Após o ataque, o jovem tentou se matar, esfaqueando o próprio pescoço, abdômen e tórax.

Homicídios em massa podem, muitas vezes, ter motivações étnicas, raciais, sociais, ou religiosas, mas podem ser também ações impulsionadas por respostas absolutamente individuais"

Surtos psicóticos

Em caso de surtos psicóticos (em que há uma perda de contato com a realidade), a pessoa pode praticar crimes motivados por suas alucinações e delírios —por exemplo, ouvir vozes que ordenam que se cometa um ataque para "salvar a humanidade" ou para fugir de uma suposta ameaça.

Surtos psicóticos podem ser desencadeados por transtornos psiquiátricos (como a esquizofrenia) e pelo abuso de algumas drogas (como a cocaína ou o crack). Importante lembrar que na esmagadora maioria das vezes tanto os transtornos psiquiátricos como o eventual uso ou abuso de substâncias não levam a um episódio dessa natureza.

Apesar de o garoto estar em uma faixa de idade mais vulnerável tanto para quadros de esquizofrenia como para o abuso de substâncias, não há nenhuma informação até aqui nesse sentido. É bom lembrar que em uma situação de surto psicótico, em geral, os ataques são praticados de forma mais impulsiva, sem muito planejamento.

Traços de personalidade

No caso de Saudades, o garoto parece ter comprado a arma alguns dias antes e teria "brincado" que ela seria usada em um bicho de estimação da família. Um certo planejamento, ainda que precário, pode indicar uma motivação e intencionalidade no ato, nem que essa razão só faça sentido para o próprio autor da violência.

Em transtornos de personalidade em que há uma dificuldade maior de interações sociais, pouca flexibilidade para manejo de situações críticas e uma certa dificuldade em se estabelecer uma relação empática com os outros pode haver um risco maior de atitudes autoagressivas e heteroagressivas, comportamentos antissociais e atitudes mais violentas.

Quando pessoas com esses traços enfrentam fatores estressores, esses riscos podem ser potencializados. Assim, experiências traumáticas (abandonos, bullying, abusos, agressões) e questões pontuais que desestabilizam a vida emocional (doença, violência na família, rompimento de um relacionamento amoroso, perda do trabalho) podem ajudar a disparar esses gatilhos.

O garoto aparentemente era vítima de bullying, o pai teria tentado suicídio duas vezes (tendo sido impedido por familiares) e a mãe estaria enfrentando um tratamento de câncer, só para citar algumas histórias que circularam nos últimos dias. Isso tudo pode ajudar a entender o ataque, embora não explique totalmente as motivações.

Pandemia

Além de tudo isso, na pandemia, o distanciamento social e o isolamento dos jovens têm provocado uma série de alterações de comportamento. Eles estão mais irritados, impulsivos, tristes e ansiosos. Para quem já tem mecanismos precários para lidar com frustrações, a situação atual pode ser um agravante.

Bullying

Embora não se saiba o peso que o bullying teve nessa história, é importante lembrar que ele é um dos fatores comuns a vários massacres e chacinas mundo afora. Na Finlândia, em 2007, depois de um aluno assassinar oito pessoas em seu colégio e cometer suicídio, em uma pequena cidade de pouco mais de 30 mil habitantes, o país resolveu encarar de frente a questão e desenvolveu um método efetivo de prevenção e combate ao bullying nas escolas, hoje aplicado em diversos países da Europa e América Latina.

No Brasil, os sistemas de identificação de jovens em risco para atitudes violentas ainda são precários e pouco articulados. Poucas são, também, as escolas e redes públicas de ensino que realizam ações sistemáticas de prevenção e combate ao bullying. Com a pandemia e o ensino à distância, o que já era escasso ficou ainda mais raro.

Difícil identificar e prevenir episódios tristes como esse de Saudades. Mas um trabalho mais atento e articulado das escolas para a saúde mental dos jovens, inclusive com sinais de alerta que os pais possam observar em seus filhos, um acompanhamento mais cuidadoso daquilo que eles publicam em suas redes sociais, um acesso dificultado a armas de qualquer natureza e uma rede de suporte, apoio e tratamento desses jovens poderia, ao menos, sinalizar um caminho menos sofrido para tantas famílias.