Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O que pode explicar alguém 'pegar' dinheiro de colegas, como aluna da USP
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Você deve ter visto as notícias sobre a estudante Alicia Dudy Muller Veiga, 25, que 'desviou' quase um milhão de reais da conta dos formandos da medicina da USP de 2023.
Não é raro ver casos de gestores de fundos, diretores de clubes, administradores de condomínios e até de familiares que se apropriam indevidamente do dinheiro dos outros. Mas o que leva alguém a fazer isso? A pessoa pode ter algum transtorno psiquiátrico?
Na esmagadora maioria das vezes, o que está por trás disso é a má-fé, um caráter duvidoso e uma intenção clara e bem planejada por parte do indivíduo que pratica a ação
A questão não é menos grave quando a ideia original não é sumir de vez com o dinheiro tão arduamente economizado por um grande número de pessoas e, sim, se aproveitar do acesso facilitado ao montante para tentar obter benefícios pessoais por meio de métodos pouco ortodoxos, como aplicações de risco e jogos de sorte. Ainda assim, o "principal", o dinheiro do grupo, corre o risco de evaporar, como parece ter sido o caso na medicina da USP.
Ingenuidade ou prepotência?
Por ingenuidade, inexperiência ou prepotência, a pessoa que comete essa trapaça (sim, porque não era esse o combinado com o grupo) assume riscos e pode tomar tombos gigantescos, que acabam por lesar todos os envolvidos.
Como recuperar um dinheiro que foi perdido em apostas ou aplicações de risco? Não tem como! E, ao tentar "tapar" o buraco na conta bancária com a peneira, o "rombo" pode se tornar ainda maior do que o previsto, irrecuperável.
Tive a sorte e o privilégio de me formar na Faculdade de Medicina da USP, muitas turmas atrás, e me lembro perfeitamente dos cuidados que nossa comissão de formatura tinha com o patrimônio de todos nós —e de como as pessoas que tomavam conta do que não era seu (e sim de todos) tinham noção da sua responsabilidade. E isso é regra na maioria de milhares de comissões de alunos que se formam todos os anos, Brasil afora.
Transtornos justificam?
Mas, para além da má intenção, existem explicações psíquicas ou comportamentais que podem ajudar a entender porque algumas pessoas praticam esse tipo de manobra financeira com mais facilidade, sem tanto peso na consciência? Lembrando, claro, que a ideia é tratar aqui de situações mais gerais, apenas no campo das hipóteses e conjecturas, e que nada disso pode servir de justificativa para a apropriação indevida de recursos —muito menos é uma defesa da garota da USP.
Pessoas que enfrentam o transtorno afetivo bipolar, em uma fase de mania ou de hipomania (uma versão mais branda da mania), podem ter um desejo incontrolável de gastar dinheiro, como parte de um conjunto de sintomas que apontam para um comportamento de intensa agitação psicomotora.
A pessoa em mania (polo oposto à depressão) se sente cheia de energia, acelerada, com ideias de grandeza e de poderes extraordinários, além de, muitas vezes, ter desinibição sexual. Assim, comprar demais, sem avaliar de forma adequada o que está sendo feito, pode fazer parte do cenário.
Já em alguns quadros compulsivos e de transtornos de controle dos impulsos, como o "comprar compulsivo ou o "jogar compulsivo", a pessoa pode gastar cada vez mais para lidar com seus desejos incontroláveis. A compulsão, em geral, alivia ou ocupa o espaço de pensamentos obsessivos e ansiosos. Assim, não é incomum que a pessoa esvazie suas contas bancárias, pegue empréstimos ou ate desvie dinheiro de outros para aplacar esse descontrole sobre seus hábitos.
Já a questão que muitas pessoas enxergam como falta de caráter e de empatia pode se confundir com algumas caraterísticas de um transtorno de personalidade. Esses transtornos são padrões persistentes da pessoa pensar, agir e se relacionar que podem causar sofrimento e perdas funcionais importantes.
Traços de personalidade
Nessa situação, alguns traços de personalidade são mais intensos e exuberantes e podem marcar atitudes em que a pessoa parece estar sempre focada em si, sem se preocupar com o que os outros podem pensar ou sentir.
São pessoas que parecem não se arrepender nem se incomodar com atitudes que produzem impactos negativos à sua volta.
A falta de empatia, a dificuldade de se colocar no lugar do outro e a ausência de culpa são algumas características dessas personalidades
Em qualquer um dos cenários citados anteriormente, só um exame psíquico cuidadoso, além dos dados da história clínica da pessoa, pode ajudar na precisão de um diagnóstico. E nem sempre é fácil nem simples se "cravar" uma hipótese ou outra. Não dá para afirmar, apenas com base em depoimentos e dados esparsos, se determinada atitude pode se constituir em um transtorno mental ou de personalidade.
Ações repetidas e contínuas, tomadas de forma planejada ao longo de anos, tendem a falar contra um contexto mais agudo de um transtorno, como uma fase de mania ou um quadro compulsivo. Elas sugerem mais um padrão de funcionamento, que pode ser influenciado por traços de personalidade ou, simplesmente, por características que são naturais daquela pessoa, naquele ponto da sua vida, sem nenhum outro contexto de transtorno mental.
Só resta esperar que as responsabilidades sejam devidamente apuradas, que a justiça prevaleça, e que os alunos da turma possam celebrar sua árdua jornada de forma mais tranquila e respeitosa. É isso!
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