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Lucas Veiga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A importância do acolhimento para o desenvolvimento saudável das crianças

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

12/07/2023 04h00

Nos últimos episódios de cada temporada do reality RuPaul's Drag Race, a apresentadora mostra para as finalistas fotos de quando eram crianças e pergunta a elas o que diriam hoje para a criança que foram. Costuma ser um momento em que as finalistas se emocionam muito ao se lembrarem das dores e delícias que compõem suas histórias.

A infância é um dos períodos mais delicados da vida, especialmente devido à vulnerabilidade própria dessa fase. A criança depende, inicialmente, integralmente dos pais ou pessoas que exercem a função de cuidado. A fala, a coordenação motora e a própria formação do eu são desenvolvidas na e a partir da relação familiar em que a criança está inserida.

A condição de dependência e vulnerabilidade própria da infância implica na necessidade, por parte da criança, de receber a nutrição e o acolhimento necessários tanto para sua sobrevivência quanto para seu desenvolvimento físico e psíquico. Focando aqui na questão do acolhimento, a ausência da experiência de ser acolhida, amada, bem-vinda e protegida pode desencadear sintomas orgânicos e psicológicos que tendem a perdurar na vida adulta.

De acordo com o psicanalista Sándor Ferenczi, crianças que crescem em lares onde há pouco ou nenhum acolhimento, constantes conflitos, violência e impaciência tendem a desenvolver um quadro de pessimismo, baixa autoestima, desconfiança excessiva, dificuldade em lidar com a frustração e até mesmo certa aversão a desfrutar a felicidade onde ela realmente é oferecida.

Certamente, trata-se de tendências e não de destino. Pode ou não desenvolver esses sintomas e, mesmo que estejam presentes, existe a possibilidade de trabalhar sobre si para transformar os efeitos de uma infância pouco assistida. A terapia, práticas espirituais, artísticas e os laços de amizade, entre outros, costumam contribuir sobremaneira para promover algum tipo de reparação na falta de acolhimento vivenciada.

Além da questão doméstica, o contexto social em que a criança está inserida também desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da criança. O racismo, por exemplo, é uma experiência de não acolhimento e de rejeição que a criança negra vivencia desde muito cedo, especialmente no ambiente escolar. A rigidez em relação ao que é considerado "coisa de menino" e "coisa de menina" também pode desencadear uma sensação forte de inadequação na criança que não se identifica com esses estereótipos, além de limitar a criatividade e a expressividade das crianças em geral.

No caso das participantes do reality que mencionei no início deste texto, a grande maioria delas são homens gays que vivenciaram uma série de experiências homofóbicas desde a infância em suas casas, na escola e no bairro onde moravam. A ausência de acolhimento se fez presente de maneira tão intensa e precoce que a capacidade de estabelecer relações de parceria, confiança e amor foi afetada.

O acolhimento é fundamental para o bom desenvolvimento psíquico de uma pessoa, tanto o acolhimento intrafamiliar quanto o acolhimento pela sociedade em que se vive. A ausência de acolhimento, como vimos, pode produzir efeitos nocivos sobre o bem-estar emocional. Cuidar da criança que fomos passa por proporcionar a nós mesmos experiências de autoacolhimento, criar espaços e relações seguras, insistir na capacidade de se amar. Afinal, como diz RuPaul, quem não se ama, como poderá amar outra pessoa?

Estejamos atentos também às crianças de hoje, oferecendo a elas todo o acolhimento necessário para seu pleno desenvolvimento, trabalhando para que essa sociedade seja menos hostil com nossas crianças e com a força disruptiva que elas carregam. As crianças precisam e devem ser amadas pelo que são, respeitadas, acolhidas, bem-vindas e celebradas.