Topo

Blog da Lúcia Helena

Doença de Parkinson: dá para tirar o ruído na conversa entre os neurônios?

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

10/11/2020 11h29

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Eu, que nunca fui lá grande coisa em física — embora, para meu sufoco, a física faça parte da medicina —, pergunto ao neurocirurgião Manoel Jacobsen o que, afinal, seria "modular". O dicionário tinha me dado, como primeiríssima definição, que o termo "modular" seria algo como regular o tom e a altura da voz quando você fala ou canta.

O médico — professor da Universidade de São Paulo que, com paciência infinita, me deu uma aula particular por estes dias —, respondeu seguindo com o exemplo sonoro. "É aperfeiçoar um sistema para tirar a sujeira ou o ruído. Como quando você sintoniza uma FM para ouvir música: por ser uma frequência modulada de ondas de rádio, você ouve muito melhor cada instrumento, sem a interferência de sons estranhos", me explicou. Entendido. Mas aqui a ideia de modular seria a de tirar os ruídos na conversa entre os neurônios do cérebro. E, no caso específico, de quem tem Parkinson.

A neuromodulação, para muitos, é considerada uma das maiores promessas da medicina para os novos tempos. Tem sido usada com sucesso para tratar dores difíceis de lidar, problemas de tônus muscular, distúrbios comportamentais ou da fisiologia do aparelho digestivo e urinário —"há até trabalhos sobre o seu uso no controle do apetite", me conta o professor.

Quando focamos no Parkinson, o mais certo é a gente falar em estimulação cerebral profunda ou simplesmente ECP, porque os neurônios modulados estão localizados no sistema nervoso central. E há quem afirme que, para quem sofre da doença que o cirurgião e farmacêutico inglês James Parkinson (1755 - 1824) descreveu lá atrás, essa terapia poderia significar não apenas um controle imediato da situação, mas ter ainda um efeito protetor, prevenindo o avanço da deterioração das células nervosas por trás de uma série de sintomas, entre os quais os tremores são o menor dos males.

"Isso hoje é apenas uma conjectura. Mas é importante a gente sonhar com o futuro e checar se isso não pode estar acontecendo pra valer. Seria a melhor notícia", diz o neurocirurgião que, aliás, já sonhou outras vezes —que bom! Ainda em 1979, Jacobsen foi o pioneiro no uso dessa tecnologia no Brasil, para não dizer um dos primeiros no mundo, e admite: "Era recebido com cara feia por vários colegas porque era tudo muito novo e causava enorme receio", recorda.

Tem dado certo. Hoje, o tratamento é até disponibilizado em certas circunstâncias no SUS e, com a evolução da ciência, é bem mais viável do que no passado, sem o paciente ter de carregar no corpo uma geringonça com duas antenas que tornava o sistema, em si, bastante frágil e o dia a dia do cidadão, uma complicação.

Nada mais é assim. Agora tudo é compacto, delicado e, o melhor, tudo fica implantado. Outro equipamento, que nem sequer precisa ser encostado ao corpo, faz a leitura a distância se for o caso e permite que o médico ou o próprio paciente saiba o que está acontecendo lá dentro —dentro de sua cabeça, bem entendido. As novas baterias, por sua vez, duram cinco, seis, sete anos. Ou seja, vida mais longa e com qualidade a quem tem Parkinson.

Muito além de tremer

Segundo o professor Manoel Jacobsen, o Parkinson provavelmente acomete a humanidade desde que ela existe. "No entanto, é só agora, que estamos vivendo muito mais, que damos conta de sua existência", diz.

De fato, embora existam casos raros em jovens e até mesmo modalidades de Parkinson provocadas pelo uso de substâncias —certos remédios vasodilatadores, por exemplo, provocam esse distúrbio, mas aí ele é reversível, bastando interromper a medicação— , a maioria dos portadores já passou dos 60 anos. "Nessa faixa etária, em média 1% da população tem Parkinson. É um número grande", observa o neurocirurgião. No Brasil, isso quer dizer um paciente a cada 400 ou 600 sexagenários, conforme a região.

"O tremor, que predomina em alguns pacientes, tem um caráter cinematográfico", opina o médico. E justifica: "Digo isso porque ele chama a atenção, mas interfere muito pouco nas atividades do dia a dia". Faz sentido, já que a agitação involuntária de um braço ou de uma perna, da cabeça ou até mesmo do corpo inteiro em geral acontece quando a pessoa está parada, em repouso. E, ao se mexer para fazer qualquer tarefa, o tremor é atenuado.

Existem outros sintomas motores mais chatos. A rigidez é um deles — a amplitude do movimento vai diminuindo aos poucos, o que atrapalha um bocado. E, talvez ainda pior, é a lentidão cada vez maior para se mover, uma câmera lenta que os médicos chamam de bradicinesia. "Ela compromete bastante a vida profissional e até mesmo a social", nota o médico, fechando a tríade clássica descrita por James Parkinson.

Vale acrescentar, quem sabe, um quarto sintoma que dá para alguém perceber só de bater os olhos. Ele seria uma instabilidade postural. A cabeça pode se inclinar para um lado, os ombros podem se manter caídos, a coluna irá se curvar para frente ou para trás.

Mas importante: o paciente de Parkinson nem sempre tem o pacote completo. Existem portadores que nem sequer tremem. Como quase tudo em saúde, podemos dizer que cada um é cada um.

E muito além do jeito de se mover

A doença é progressiva. Com o tempo, outros sintomas surgem. Manoel Jacobsen me lista alguns deles: "Dificuldade para deglutir e para verbalizar seus pensamentos. A pressão arterial também pode se tornar instável. A pele vira seborreica e o paciente, muitas vezes, começa a suar em excesso. Em fases mais avançadas, quem tem Parkinson deixa de controlar a micção e, finalmente, surge a demência". Sim, tudo isso também é Parkinson.

"Existe ainda a dor, que infelizmente é frequente", completa o neurocirurgião, que se preocupa bastante com ela. "'É um sofrimento terrível e as pessoas acham que essa sensação dolorosa tem origem muscular, causada pela rigidez, mas nem sempre é assim. Muitas vezes, ela tem mais a ver com uma neuropatia mesmo", explica o médico. Ou seja, é a dor pela dor. Aí, causada pelos tais ruídos no cérebro, que não está produzindo a contento moléculas como as de serotonina. Na tal conversa entre os neurônios, a serotonina equivaleria ao seguinte vocábulo: bem-estar.

Uns dez anos antes

"As pessoas falam muito na falta de outro neurotransmissor, a dopamina", comenta o professor Jacobsen. É justo: calcula-se uma queda de 60% a 80% na produção dessa substância no cérebro de quem sofre de Parkinson. Mas a falta de modulação nas correntes elétricas —que seriam as conversas entre os neurônios — desequilibra a síntese de diversas outras moléculas. A serotonina é apenas uma delas.

"Talvez por isso, veja que interessante, cerca de uma década antes de surgir qualquer diferença nos movimentos — regulados, sim, pela dopamina—, podemos notar quadros de depressão e até mesmo distúrbios digestivos nos pacientes", diz o professor Jacobsen . Cuidado: ninguém aqui está dizendo que toda criatura deprimida irá desenvolver Parkinson. Mas hoje é sabido que algumas pessoas nesse estado estão, na realidade, com um Parkinson engatinhando. E o mesmo pode se dizer a respeito da perda de olfato, que certos pacientes também percebem anos antes de a doença neurodegenerativa ser revelada.

De cima para baixo

Para o médico, esses primeiros sinais que passam batido fazem sentido. Isso porque ele conhece bem o ponto de partida do Parkinson: "os sinais iniciais de degeneração surgem na parte mais baixa do tronco cerebral, onde tem o nervo vago que está ligado à digestão e núcleos de neurônios que produzem a serotonina e a noradrenalina, dupla associada às síndromes depressivas", descreve. Para você entender, essa região está na parte de trás da cabeça.

Aí o Parkinson vai subindo e subindo. Com o avanço da doença, as células degeneradas são encontradas em áreas que se aproximam do cocuruto, até se espalharem pela região temporal. É esse o trajeto, bagunçando a produção de todos os mensageiros cerebrais — acetilcolina e encefalinas, para engrossar o rol de exemplos com mais duas citações.

Como acontece? "Provavelmente, é uma doença priônica", esclarece o médico, mergulhando fundo na ciência. Príons são proteínas que, embora sejam apenas isso —proteínas!— contaminam uma célula e depois a vizinha e depois a outra, tentando explicar de um jeito simples. Aliás, uma das terapias investigadas para conter o Parkinson lança mão de anticorpos monoclonais, isto é, anticorpos fabricados sob medida em laboratório para barrar as bandidas. "Esses estudos já estão em fase 2", conta o professor

Como anda o tratamento

Alguns remédios, como os anticolinérgicos — eles relaxam a musculatura lisa e, com isso, reduzem os tremores— são usados desde a década de 1960. O problema é que, nos primeiros anos, causavam um inferno à parte: náuseas sem fim, tonturas, problemas de pressão.

Outras medicações ou imitam a dopamina ou inibem a enzima capaz de quebrar essa molécula, prolongando a sua ação e, digamos, otimizando o seu estoque reduzido no cérebro acometido pelo Parkinson. O problema é que até hoje alguns pacientes, de cara, não suportam os efeitos colaterais. "E, para outros, que em um primeiro momento se dão bem, a lua-de-mel um dia termina, com os remédios deixando de agir ou aparecendo seus efeitos adversos", lamenta informar o cirurgião. Em geral, isso costuma ocorrer depois de quatro anos ou mais tomando a medicação.

É quando os medicamentos falham de saída ou quando o paciente se torna refratário aos seus benefícios que a terapia de estimulação cerebral entra em cena. "Hoje, implantamos o dispositivo no cérebro de um paciente em cerca de três horas", conta, risonho, o neurocirurgião. No passado, até por falta de modernos exames de imagem apontando as áreas problemáticas durante o próprio procedimento, a operação consumia umas oito horas.

Uma fileira de eletrodos fica instalada no cérebro, conectada a uma extensão que, sob a pele, desce da cabeça passando pelo pescoço até alcançar a área superior do peito. É ali que fica o neuroestimulador, também implantado, feito um marca-passo cardíaco. "Ele produz o pulsos elétricos necessários para áreas específicas do cérebro, modulando cada uma delas. Os aparelhinhos modernos conseguem analisar até mesmo a atividade elétrica das áreas vizinhas àquelas que já estão alteradas", diz o neurocirurgião.

Segundo ele, com tanta informação, disponibilizada o tempo inteiro, o médico pode entender a evolução da doença com uma base concreta, real —e não apenas pelos relatos dos pacientes que, embora preciosos, podem ter uma dose elevada de subjetividade. "É possível até mesmo diminuir os pulsos ou interromper por uns dias esses estímulos elétricos, se determinada área está funcionando bem, o que promove um descanso para os seus neurônios e prolonga a vida útil da bateria."

A grande dúvida, sobre a qual nenhum cientista publicou por enquanto, é se tirar o ruído impediria o telefone sem fio do Parkinson de alcançar as regiões mais elevadas do cérebro. Mas só o fato de se pensar nessa possibilidade já é sensacional.