Não é aceitável que tantas mulheres ainda tenham câncer de colo de útero
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Justo hoje, por coincidência, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), começaria a divulgar oficialmente um compromisso ousado: erradicar o câncer de colo de útero no país. Já estava programado e, aliás, por conta da pandemia isso até que demorou um pouco para acontecer. Porque, na verdade, o pacto é com a resolução da OMS (Organização Mundial de Saúde), firmada em agosto.
Os nossos ginecologistas devem se engajar no esforço da OMS para varrer completamente essa doença do mapa-múndi. Fique sabendo que talvez esse seja o único câncer capaz de despertar tamanha ambição na gente —a de fazê-lo sumir de vez ao invés de matar, só no Brasil, mais de 7.000 mulheres por ano.
Mas horas antes, justo ontem à noite, por triste ironia a apresentadora Fátima Bernardes anunciou em suas redes sociais que começará o tratamento de um câncer de útero, deixando de gravar por um tempo o seu programa nas manhãs da Globo para ser operada. Escrevo este texto chateada, logo depois da notícia e ainda sem saber se ela tem um tumor de colo de útero, o tal que os ginecos têm a pretensão de fazer desaparecer, ou algum câncer de corpo uterino, sendo o mais comum deles o de endométrio, como chamam o finíssimo revestimento interno do órgão. Seja lá qual for, Fátima — figura querida de todos nós — foge totalmente das estatísticas por razões diferentes em um e em outro.
Um órgão e duas famílias de tumor
Se você imaginar o útero com seu formato de pêra de cabeça para baixo, o corpo desse órgão seria a região equivalente à da polpa da fruta e uma lesão maligna ali, que pode ter um componente genético, costuma aparecer sem aviso prévio, surpreendendo com um sangramento fora de hora ou depois da menopausa geralmente aquelas mulheres mais velhas ou que têm obesidade ou as duas coisas. Não é, decididamente, o caso da minha colega. Se é esse o problema dela, trata-se de uma zebra danada.
"Já o cabinho da pêra seria o colo do útero", descreve o ginecologista Agnaldo Lopes da Silva Filho, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e presidente da Febrasgo. Pois bem: de janeiro deste ano até dezembro acabar, devem surgir 16.590 casos de câncer desse "cabinho" no Brasil, a maioria na região Norte.
A doença ocorre predominantemente em mulheres não brancas e com baixa escolaridade —cerca de 62% dos casos —, expondo a chaga da falta de acesso à informação e aos serviços de saúde em grupos mais vulneráveis da população. Também não é o caso de Fátima.
Se for esse o problema que enfrentará, ela é duplamente exceção. Isso porque —ainda bem! — flagrou a lesão nos estágios iniciais, como contou com a maior transparência, enquanto oito em cada dez brasileiras com câncer de colo uterino recebem o diagnóstico quando as células malignas já estão invadindo outros órgãos.
Por isso mesmo, tumores nessa entrada estreita do útero fazem uma morte no país a cada hora e meia. "Quando poderiam ser totalmente curáveis, se fossem descobertos cedo. Ou melhor, quando poderiam nem sequer existir, com as medidas certas", lamenta Agnaldo Silva Filho. "Garanto: não faz o menor sentido as mulheres continuarem morrendo por causa do câncer de colo de útero."
Por que esse câncer nem deveria existir
"Quando falamos em rastreamento do câncer de mama e a mulher faz a mamografia, o que o exame pode revelar é um tumor muito pequeno, na melhor das hipóteses", compara o presidente da Febrasgo. Ou seja, um câncer praticamente recém-nascido, por assim dizer, com enormes chances de sucesso no tratamento, mas ... Mas ainda assim um câncer.
"Já os exames usados para rastrear o câncer de colo uterino, desde que feitos com a periodicidade certa e do jeito correto, apontam uma lesão pré-cancerosa, que é quase 100% curável", explica o médico. Ela pode cair fora antes de virar um câncer pra valer.
E, cá entre nós, nem essa lesão com vocação para o mal deveria surgir. Explico: sua causa é um vírus. O papiloma vírus humano, mais conhecido como HPV. E para ele temos vacina, segura e eficaz, que ainda por cima é disponibilizada aos adolescentes no SUS. Então, qual seria mesmo o sentido de ainda existir o câncer de colo de útero?
O vírus por trás da malignidade
O causador do terceiro câncer mais comum em mulheres — perdendo apenas para o de mama, primeiríssimo colocado, e o de intestino — é transmitido de uma pessoa para outra com maior facilidade. Basta um chamego mais quente. Não, não é preciso uma relação sexual com penetração, por exemplo. Basta mão na coisa, coisa na mão. Ou na boca.
E, como namorar é normal, pode ir recolhendo ligeiro os seus preconceitos — nem é preciso namorar tanto. Ou melhor, com tantos. "Um estudo com universitárias americanas que tinham tido um único parceiro mostrou que exatamente 50% delas já haviam se infectado pelo HPV", conta Agnaldo Silva Filho.
Com a idade —e as oportunidades —, a prevalência da infecção só aumenta, se aproximando de 80%. Ou seja, oito em cada dez pessoas adultas têm ou já tiveram pelo menos uma vez na vida o maldito papiloma vírus humano. "Ele é considerado o segundo maior agente causador de câncer no mundo, só fica atrás do tabaco", afirma o médico.
No entanto, muitas vezes sua presença é transitória. "Em 80% das vezes, o organismo combate o vírus e, daí, tudo parece resolvido", diz Agnaldo Silva Filho. Portanto, um recado nas entrelinhas: uma boa imunidade, favorecida por condições adequadas de saúde, ajuda bastante.
O problema são os outros 20% de mulheres que não se livram sozinhas do HPV e desenvolvem uma infecção persistente. Ela — quando não causa a chateação das verrugas genitais, provocada por alguns tipos de papilomavírus — não dói, não coça, não arde. Porém, feito água mole em pedra, lesiona o colo do útero aos poucos. Pode levar décadas até um câncer dar as caras. Mas em algum momento se chegará nele, se nada for feito nas fases anteriores.
Os médicos têm um nome bonito para as primeiras fases desse estrago: neoplasia intra-epitelial cervical ou simplesmente NIC. "Logo no começo, se encontramos a lesão no estágio NIC 1, não fazemos nada, só acompanhamos a paciente", explica o ginecologista. "Isso porque, de novo, o organismo pode resolver aquilo por si só", justifica. Nos estágios NIC 2 e NIC 3, porém, os médicos tiram apenas aquele pedacinho lesionado de útero. Ainda são lesões pré-cancerosas.
Só depois de todas essas fases é que surge o câncer. Pode demorar muitos anos para aparecer, mas quando ele vem, geralmente vem com tudo — invadindo. Exigindo, aí, cirurgia ou radioterapia combinadas com quimioterapia.
Vacina: cortar o mal pela raiz
É isso o que faz a vacina. No SUS, ela é oferecida de graça a meninas de 9 a 14 anos, em um esquema de duas doses com intervalo de seis meses entre elas. E a meninos de 11 a 14 anos, também no esquema de duas doses. Saiba que é o certo: se vacinar bem no início ou até antes do início da vida sexual. Não faz sentido se expor ao HPV sem o organismo estar previamente protegido.
No entanto, quem não foi vacinado na adolescência pode correr atrás do atraso na rede privada. O imunizante é indicado para homens até os 26 anos e para mulheres até os 45. A meta da Febrasgo é fazer com que 90% das pessoas nessa faixa de idade estejam em dia com a vacina.
Como? "Informando mais a população sobre o câncer e, ainda, incentivando que os ginecologistas abordem o assunto, perguntando às pacientes se elas estão vacinadas ou, ainda, se suas filhas e netas estão vacinadas", conta Agnaldo Silva Filho.
Aviso: estamos bem longe desses 90% de cobertura vacinal. Na verdade, estamos abaixo de 40% no Brasil. E talvez se pergunte: qual a importância de vacinar os rapazes nessa história? "Bem, em primeiro lugar, o HPV também está por trás de 60% dos tumores de cabeça e pescoço, como o câncer de boca e o de faringe", responde o médico.
"Ele ainda causa câncer de pênis. E, no que diz respeito ao útero, os homens sempre podem infectar suas parceiras. De maneira que, para prevenir o tumor de colo uterino nelas, é fundamental que eles também sejam vacinados."
Mudança nos exames preventivos
O principal deles é o papanicolau: o ginecologista ou, em alguns casos, até enfermeiros fazem uma espécie de raspagem rápida do colo uterino, o chamado esfregaço. O material, colocado em uma lâmina, depois recebe reagentes corantes e é examinado por patologistas experientes que buscam células com pinta de que estão prestes a dar encrenca.
O problema, como os especialistas da Febrasgo notam — e eles pretendem se aproximar do Ministério da Saúde para ajudar a resolvê-lo — é que, mais do que faltar gente para colher papanicolau pelo Brasil afora, o procedimento muitas vezes é feito do jeito errado. "Às vezes não esfregam a região certa do útero", exemplifica Agnaldo Silva Filho. Sem contar que, na outra ponta, faltam patologistas para examinar tudo.
Uma saída, que está sendo proposta pela Febrasgo, é substituir esse exame pelo teste de DNA-HPV, o qual detecta a presença desse vírus. Com uma vantagem: com a ajuda de um equipamento introduzido pela vagina, feito um pequeno embolo, a própria mulher é capaz de colher sua amostra. Isso pode ser interessante em regiões onde faltam pessoas para realizar exames.
Se o teste de DNA-HPV não acusa o vírus, então não há motivo para se caçar lesões suspeitas com o papanicolau e, posteriormente, com outro exame chamado colposcopia, em que o médico espalha ácido acético no colo uterino. Para bom entendedor de química, vinagre mesmo. Ele deixa as áreas problemáticas esbranquiçadas e, daí, o ginecologista sabe exatamente os pontos dos quais precisa tirar amostras de tecido para biópsia.
É com a introdução desse novo exame, o incentivo à vacinação e treinamento, muito treinamento aos ginecologistas e às suas equipes, que o câncer de colo de útero poderá virar um capítulo ultrapassado dos livros de Medicina. Assim como a gente espera que ele vire notícia velha e ultrapassada na vida da Fátima Bernardes.
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