Topo

Blog da Lúcia Helena

A falta que faz o cheiro das pessoas e de tudo o que mais amamos

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

29/12/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Se tem uma coisa que esse vírus vem nos roubando há meses — além de vidas — é o aroma do que nos importa profundamente. E isso vale até mesmo para quem, respirando aliviado, lembra a sorte de ainda não ter sido infectado por ele. Porque, sim, eu sei: entre quem contraiu o miserável essa história pode feder a problema, já que é bem alta a prevalência de anosmia, a perda do olfato. Mas nem é disso que estou falando, pelo menos para começo de conversa.

Pois sinta: se as videoconferências amansam um pouco a saudade, elas entregam a voz de quem gostamos aos ouvidos e as imagens aos olhos, mas deixam o nariz na mais pura frustração. E esse cotidiano que de certa maneira se torna inodoro na pandemia, lavado do perfume dos nossos lugares mais queridos e da nossa gente, é esquisito demais.

Faz tempo que muito neto não sente o cheiro da casa dos avós. E que avós ficam sem aspirar aquele odor da cabecinha do bebê. O bolo, mesmo que alguém mande lhe entregar com carinho, não chega com aqueles vapores que preenchem a cozinha e as narinas. Até a missa na tevê ou no Instagram, que Deus me perdoe, é diferente sem aquele olor de imagem antiga misturado com o da madeira dos bancos mais o aroma de pétalas que, cá entre nós, quase sempre contam ao nariz que estão prestes a murchar. Já as aulas à distância se ressentem da ausência do suor no ar depois do recreio e perdem o clima. Por aí vai. Nosso faro aponta que isso é novo, mas não pode ser normal.

Afinal, no mundo quase tudo tem odor, passando mensagens químicas de animais, vegetais, minerais e até de objetos manufaturados, o que baliza como navegamos nele. Muito do que deciframos de um ambiente, que faz com que ele impregne a memória e que possa reconhecido mais tarde, é captado pelo mais complexo dos nossos sentidos, que é justamente o olfato.

Ele é tão complexo que só começou a ser compreendido pra valer há apenas umas duas décadas, garantindo a uma dupla de cientistas americanos, a bióloga Linda Buck e o fisiologista Richard Axel, um Nobel em 2004 por ter mostrado o funcionamento do que está bem no nosso nariz: os mais de 25 milhões receptores olfatórios. E esses receptores não param de surpreender.

Por muito tempo se disse que eles eram capazes de diferenciar algo perto de 100 mil cheiros. Mas, há seis anos, um estudo da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, publicado na Science, mudou de vez essa estimativa. Acredite: em condições normais, seu nariz é capaz de fazer a distinção entre nada menos do que 1 trilhão de aromas, asseguram os autores.

"'É um número exponencialmente maior do que o de cores e o de sons que os olhos e os ouvidos humanos, respectivamente, conseguem distinguir", compara Marcio Nakanishi, diretor do serviço de otorrinolaringologia do Hospital Santa Luzia, da Rede D'Or, em Brasília.

Foi de lá que ele organizou, para fechar este ano, um workshop online, com o apoio da Academia Brasileira de Rinologia, reunindo os maiores especialistas brasileiros no assunto para discutir o impacto desse sentido na saúde e como tratar os casos em que essa incrível capacidade de farejar sai abalada pela covid-19.

O primeiro sentido da vida

Antes de enxergar ou de ouvir qualquer coisa, nossos ancestrais mais longínquos — no caso, seres unicelulares bastante primitivos — só tinham o olfato para captar informações do ambiente, perceber a presença de nutrientes no meio aquático e juntar-se a seus iguais. Na trajetória da evolução, a olfação se firmou cada vez mais como uma capacidade capaz de garantir a perpetuação de cada espécie — com a nossa não seria diferente.

"Desde o nascimento até a senilidade, o sistema olfatório tem um papel dos mais relevantes", diz Marcio Nakanishi. "Somos atraídos por odores interpretados como prazerosos e seguros. E nos afastamos dos cheiros associados ao desprazer e ao perigo."

Para me ater a exemplos básicos, todo ser humano tende a ficar mais sensível aos cheiros ao seu redor quando está com fome, como se ainda precisasse da ajuda do nariz para localizar algo capaz de matá-la. E, se por acaso fareja o alimento, o cérebro manda a boca salivar e o estômago produzir o suco gástrico, como se captasse no ar que seria a hora de botá-los para trabalhar.

Sem contar que boa parte do que achamos ser o sabor de uma comida não vem do seu contato com a língua, que mal saberia apontar a diferença de um chocolate para uma banana. Ora, para ela os dois têm gosto doce. A distinção de um bombom para a fruta só é possível graças a moléculas que se desprendem enquanto você os mastiga e alcançam os tais receptores olfatórios, na parte mais funda e alta do nariz, atrás da área entre suas sobrancelhas.

Não à toa, o doutor Nakanishi explica: "Pessoas com distúrbio do olfato diminuem a ingestão alimentar. E elas também estão propensas a acidentes pessoais e de trabalho". Faz sentido. Da mesma forma como alguns bichos percebem pelo focinho a presença de um predador e botam as patas para correr, nós podemos fariscar ameaças — como a inhaca de um alimento estragado, a catinga de uma ferida purulenta, o cheiro de queimado. Sem um olfato a mil maravilhas, metemos o nariz ou permanecemos onde não devíamos.

O cheiro do outro

Toda pessoa, dizem os estudiosos, tem um aroma próprio que seria a combinação final das substâncias odoríferas liberadas por suas diversas secreções, pelo hálito e através da pele. Dizem também que na primeira semana de vida o recém-nascido já sabe qual é cheiro de sua mãe e há quem teorize que os receptores olfatórios comecem a treinar para reconhecê-la ainda no ventre, quando o feto aspira o líquido amniótico. "Não há nada tão comprovado nesse aspecto", diz, cauteloso, o doutor doutor Nakanishi. Mas o médico admite que existe algo no ar: "Recentemente, um estudo afirmou que um dos primeiros sinais de uma crise conjugal é quando um passa a desgostar do cheiro do outro", ele conta.

Um fato incontestável para a ciência: os distúrbios do olfato estão intimamente relacionados com problemas de memória e também com a depressão. Portanto, não por uma incapacidade fisiológica, mas pelas atuais circunstâncias, deixar de sentir o cheiro dos outros ao dar um abraço, beijar ou simplesmente ficar ao lado de alguém no trabalho em tese pode estar colaborando, sim, para a melancolia generalizada que a gente sente por aí. A falta desses odores, que muitas vezes passam despercebidos pela consciência, pode transformar todo o homem em uma ilha.

Como funciona o nosso olfato

Tudo o que cheira se desmancha no ar. Ou seja, para que algo tenha o seu perfume próprio, é preciso que vá soltando moléculas voláteis na atmosfera, que uma vez aspiradas sobem até a câmara olfatória no fundo da cavidade nasal. Ali, é como se o osso do teto tivesse milhões de furinhos, através dos quais dependuram-se diretamente do cérebro nervos microscópicos com receptores na ponta. "E cada um deles, ao ser tocado por uma molécula odorífera, desencadeia um estímulo elétrico que, então, logo de cara se espalha por diversas áreas cerebrais."

Parece simples, mas está longe de ser. Primeiro, pela questão da interpretação do cheiro em si. O que conhecemos como o odor característico de qualquer coisa pode ser, na realidade, um mix de centenas de moléculas soltas no ar. Aquela cerveja que você pretende abrir por estes dias quentes, por exemplo, combina no mínimo 700 delas.

"Vamos imaginar que esses receptores fossem lâmpadas de cores diferentes. Um morango acenderia todas as vermelhas e umas poucas amarelas. Já a xícara de cafezinho acenderia muitas amarelas e algumas lâmpadas azuis", exemplifica o doutor Nakanishi. "As numerosas possibilidades de combinações diferentes resultam naquele número impressionante de 1 trilhão de cheiros distinguíveis pelo nosso nariz."

O médico chama a atenção para o fato de a informação olfativa atingir várias partes do cérebro ao mesmo tempo em vez de chegar, primeiro, em uma única região da massa cinzenta para depois ser espalhada. "Por isso, ela tem múltiplos efeitos tão fortes e imediatos sobre as emoções, a memória, o próprio funcionamento do sistema nervoso", justifica.

O que nos faz perder o faro

Segundo Marcio Nakanishi, vários problemas podem estar por trás da perda olfatória. "As causas menos comuns são determinados distúrbios congênitos e até mesmo doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer", diz ele.

Também não é frequente, mas pode acontecer de a pessoa perder a capacidade de sentir cheiros após o contato com substâncias que são tóxicas para os receptores olfatórios. Elas vão desde quimioterápicos como a cisplatina usada no tratamento de um câncer até componentes de tinturas de cabelos ou da gasolina quando são aspirados rotineiramente.

"Uns 15% dos casos têm a ver com traumatismos cranianos", calcula o otorrino. Aí, o grau da perda vai depender da severidade da pancada, que pode arrasar tanto os nervos que levam as mensagens dos cheiros até o cérebro quanto regiões do mesmo encarregadas de interpretá-las", continua o médico.

As rinites e as sinusites crônicas, por sua vez, respondem por mais de metade até 60% das queixas. "Nesses pacientes, a função olfatória costuma flutuar, às vezes melhorando com o uso de corticosteróides", explica o doutor Nakanishi.

Já as infecções das vias aéreas superiores — e aqui temos a gripe e os resfriados — representam de 10 a 20% dos episódios. A pessoa pode se dar conta de uma hora para outra que não está sentindo direito os cheiros ou que a comida ficou com aquele gosto de coisa alguma. E é até fácil entender quando o nariz está entupido, dificultando que as moléculas aromáticas alcancem a região repleta de receptores ou que encostem neles, se tudo está recoberto pelo excesso de muco. "Mas a grande maioria se recupera após o quadro infeccioso", diz o otorrino.

Na covid-19, porém, nem sempre o final é esse. Um estudo publicado recentemente pela USP (Universidade de São Paulo), realizado com 655 pacientes infectados pelo novo coronavírus, mostra que oito em cada dez deles apresentaram dificuldades para sentir cheiros, sendo que 42,9% tiveram perda total. É que a famosa proteína spike, que o coronavírus usa como chave para entrar nas células, tem uma enorme afinidade com o chamado neuroepitélio olfatório, a mucosa repleta de fios ou receptores conectados ao cérebro. E, uma vez ali, vai destruindo tudo.

No trabalho da USP, os indivíduos com anosmia foram reavaliados passados dois meses da infecção e 44,7% deles — ou seja, quase a metade — não voltaram a sentir cheiros ou melhoraram apenas parcialmente.

Os testes para avaliar o olfato

"Assim como existe a audiometria para medir a audição, existe olfatometria para mensurar a capacidade de alguém sentir cheiros, mas pouca gente a conhece", conta Marcio Nakanishi. No Brasil, são dois testes disponíveis. Em um deles, o UPSIT (sigla do inglês para teste de identificação do olfato da Universidade da Pensilvânia), a pessoa raspa a superfície de dezenas de blocos de papel — um por vez, claro. Ao arranhá-los, rompe microcápsulas cheias de moléculas odoríferas.

Quem tem entre 25 e 30 anos é capaz de acertar perto de 40 dessas raspadinhas. "Mas, para uma pessoa acima de 65 anos, já pode ser considerado normal um acerto em 34 delas, porque com a idade há uma queda dessa função", diz o médico.

O outro teste disponível entre nós é o de Connecticut. Além de avaliar se o sujeito consegue dizer qual seria determinado cheiro, trazendo para perto do seu nariz frascos com o aroma de substâncias comuns no dia a dia, esse teste revela o que os médicos chamam de limiar olfativo. "Podemos comparar com o exame feito pelos oftalmologistas, diminuindo cada vez mais a letra projetada para saber a partir de que ponto você deixa de enxergar direito", explica Nakanishi. Só que, aqui, a pessoa precisa fungar frascos com concentrações progressivas de butanol, cujo bodum não me agrada — lembra o da gasolina.

Testes assim devem ser realizados não apenas para avaliar perdas, mas outros problemas. Tem gente que até sente cheiro, mas é capaz de confundir o aroma da paçoca com o da naftalina. Existem ainda pessoas com fantosmia — elas juram sentir o perfume de uma flor onde não há cheiro algum. Tristes são os casos de cacosmia, mais uma distorção desse sentido por uma espécie de curto-circuito dos receptores, que faz a vítima sentir fedor em tudo, até na tal da flor.

Para devolver os aromas a quem teve a covid-19

"Para quem nota que está com anosmia depois de ser infectado pelo novo coronavírus, é fundamental que um desses testes seja feito o quanto antes para que a gente possa iniciar o tratamento o mais precocemente possível, aumentando a probabilidade de tudo voltar ao que era", avisa Nakanishi.

O tratamento pode incluir vitamina C para regenerar o epitélio onde o Sars-CoV 2 fez estragos, bem como outros antioxidantes, suplementação de ômega-3 e remédios. "No caso, notamos que os sprays de corticoides pouco adiantam. Devemos lançar mão de lavagens com esse tipo de medicação, feita com prescrição médica", avisa o especialista.

O paciente precisa ainda ser disciplinado para fazer sua lição de casa: o treinamento olfatório, uma espécie de fisioterapia para os receptores encarregados de captar os aromas. "Isso é parte fundamental do tratamento", opina Nakanishi.

Treinar o nariz é simples. Mesmo que aparentemente não sinta nada, a pessoa é orientada cheirar quatro essências de manhã e à noite, dedicando de 10 a 20 segundos a cada uma delas: o eucaliptol, do eucalipto; o fenil-etil-álcool das rosas; o citronelol dos limões e, finalmente, o eugenol do cravo-da-índia. Isso pode dar excelente resultado, desde que seja iniciado cedo e que quem está com anosmia pós-covid repita essas fungadas todos os dias. Persistentemente, sem desistir até o nariz quem sabe voltar a sentir as moléculas tragadas em um abraço, o perfume mais precioso que essa pandemia negou a todos nós.