Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Vários mal-entendidos atrapalham a vida de quem sofre de dermatite atópica
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Imagine um muro todo bonitinho, com tijolos muito bem colocados e cimento. Agora procure visualizar outro muro, só que com tijolos desalinhados, simplesmente amontoados e sem cimento algum entre eles. Esta foi a comparação que ouvi da dermatologista Mayra Ianhez, professora da Universidade Federal de Goiás, para que eu entendesse a pele de quem tem dermatite atópica.
É uma boa figura para esse drama. A pele, afinal, é um muro dividindo dois mundos — o interior do organismo e o ambiente externo. A partir do momento em que existem brechas e que falta o "cimento", toda a água que está do lado de dentro se evapora. Daí o ressecamento.
E toda substância que está do lado de fora, só de roçar, já entra. Pode ser o sabão do banho, o detergente da pia ou, enfim, moléculas das mais variadas espécies. O corpo, então, reage às partículas intrometidas com uma baita inflamação. O resultado desse entra-e-sai é uma coceira sem fim, vermelhidão e descamação por qualquer bobagem. "Tudo irrita, às vezes a ponto de ferir demais", diz a médica.
Esse inferno sentido na pele tira literalmente o sono de tanto incomodar. Derruba a autoestima. Faz a pessoa virar alvo de preconceito pela aparência das lesões. Para alguns, atrapalha a rotina profissional tamanho o mal-estar e, sem dúvida, é capaz de afetar o desempenho escolar da criançada.
Aliás, segundo um levantamento global publicado neste ano, uma em cada cinco crianças brasileiras sofre de dermatite atópica. É um número tão elevado que chega a ser esquisito a gente não falar tanto do assunto. "Sabemos que 60% dos casos vão desaparecer, em geral até a adolescência. Isso pode ser para sempre ou significar uma remissão prolongada, com o paciente ficando muitos anos livre das crises. Os outros 40% das crianças, porém, continuarão com dermatite atópica pelo resto da vida", informa Mayra Ianhez.
Será que, olhando para um pequeno com as bochechas que até aparecem arranhadas, dá para prever se ele seguirá assim ao se tornar gente grande? "Podemos suspeitar que crianças com crises de dermatite atópica muito graves e aquelas que também apresentam asma ou rinite provavelmente vão ficar com o problema de pele na fase adulta", conta a dermatologista. "Mas também há casos leves que não somem com a idade. Então, para ser bem honesta, não dá para a gente encarar os pais e afirmar se a criança terá aquilo para sempre."
E por que para uns a dermatite atópica desaparece e para outros não? "Essa é outra explicação que, por enquanto, ninguém tem", admite a professora. Assim como ninguém sabe por que — embora sejam episódios mais raros — existem indivíduos em que essa dermatite aparece quando já são mais velhos, inclusive na terceira idade. "Quando ela surge em idosos, é ainda mais complicado de descobrir, porque se confunde com um monte de outros problemas."
A confusão começa no diagnóstico
Os mal-entendidos surgem logo no início da história. É que não existe qualquer exame de sangue, biópsia, nem nada capaz de cravar que alguém tem dermatite atópica, não importando a sua idade.
Para flagrar o seu problema, os pacientes dependem única e exclusivamente do olhar investigativo de um bom especialista, dermato ou imunologista. Só que, infelizmente, um terço deles termina com um diagnóstico errado. Sai da consulta ouvindo que deve ser um caso de dermatite de contato ou do tipo seborreica. Ou escuta que tem psoríase — a aparência das lesões até enganam, mas são problemas completamente distintos. Resultado: logo vem a prescrição de um tratamento equivocado também, sendo incapaz de oferecer alívio.
"Mas é que, em alguns casos, é desafiador mesmo", justifica a professora Mayra, que já escreveu artigos para ajudar seus colegas a diferenciarem a dermatite atópica de mais de trinta outras doenças de pele que dão sinais parecidos. É preciso ficar atento em minúcias para separar uma condição de outra, o que exige paciência de todos os envolvidos.
A princípio, os médicos se baseiam em quatro critérios. "Se o paciente se encaixa em três deles, a suspeita fica altíssima", diz Mayra Ianhez. O primeiro é o histórico familiar. "Com frequência, existem parentes que também têm ou que tiveram dermatite atópica. Ou, então, há casos de asma e de rinite na família", explica a dermatologista.
O segundo critério é a localização das lesões, que costumam se concentrar em áreas de dobras de pele, como nas articulações. "Se bem que, em crianças pequenas, elas aparecem em outros locais, como nas bochechas", observa.
Um terceiro aspecto a ser notado é se há períodos melhores e outros piores. Esclareço: para muita gente, a dermatite vai e volta. Opa, mas existem casos em que ela parece preencher quase todo o calendário, sem dar trégua! Tudo confunde. Por fim, o quarto critério clínico, considerado de longe o mais importante: o prurido.
Coceira que parece não passar por nada
Talvez você pense que outros problemas de pele também cocem um bocado. Então, por que isso ajudaria a diferenciar a dermatite atópica do resto? Acontece que o prurido da dermatite atópica tende a não diminuir depois que a pessoa toma um anti-histamínico — cá entre nós, o primeiro remédio cogitado quando a pele começa a pinicar. Diga-se, a desse paciente pinica até por causa do próprio suor.
"Na dermatite atópica, existem duas vias que levam à coceira", conta a professora. "Uma delas é a liberação de histamina, como nas alergias comuns. E a outra é uma via que faz uma conexão de mão dupla com cérebro. Este segundo caminho permanece inabalável, mesmo com o medicamento antialérgico." Ou seja, o anti-histamínico nunca dá conta sozinho. "Seu valor é discutível nesse caso e, quando o receitamos, optamos pelos que têm efeito sedante, mais para dar uma trégua para o sono do que para aliviar o prurido", diz a médica.
Não adianta caçar um culpado
Vale reparar que existem pacientes que não se encaixam naqueles quatro critérios, dificultando o veredicto. Uns descamam só nas mãos e outros, no couro cabeludo. Uns ficam com a boca totalmente ressacada e outros, com palidez no centro da face. Daí o tanto de gente que perambula de consultório em consultório sem achar saída.
Há várias causas por trás da dermatite atópica. A principal delas, pano de fundo de toda a situação, é genética. A pessoa já nasce com uma programação em seus genes que diminui a proteção da pele. Por exemplo, seu organismo produz menos filagrina, substância que ajudaria a mantê-la bem hidratada.
No entanto, outro fator tremendamente importante é o imunológico, o que se notou quando pacientes transplantados que usavam um remédio chamado ciclosporina para baixar suas defesas, evitando que elas atacassem o órgão do doador, acabavam melhorando da dermatite atópica por tabela.
A doença não deixa de ser uma espécie de alergia. Mas talvez seja justo dizer que o indivíduo quase que tem alergia à sua própria pele. Aqui, mais um mal-entendido: a pessoa escuta que é uma dermatite atópica e, ao ver que é uma espécie de crise alérgica, sai atrás de um responsável.
A vida vira um exercício de perseguição. É um tal de cortar esse ou aquele alimento, por exemplo. Na verdade, não é uma alergia a nada de fora. E não existe relação direta com a dieta sempre, a não ser em crianças menores de 5 anos, quando o leite de vaca pode piorar a situação.
Os cuidados necessários
O tratamento envolve corticoides especialmente nos períodos de crise e, por vezes, drogas imunossupressoras para que a pele pare de se inflamar à toa. Quando nada disso dá conta, os médicos lançam mão de remédios imunobiólogicos , que é o caso do dupilumabe. Ele, em vez de baixar a imunidade como um todo, regula apenas o que, nas defesas do corpo, está desencadeando essa dermatite. "Ninguém pode adivinhar por quanto tempo será necessário receber a medicação. Cada caso é um universo à parte", avisa Mayra Ianhez.
Mas, tão fundamentais quando os remédios, são os cuidados na rotina. Os banhos devem ser mornos. A pele com dermatite atópica. odeia extremos de temperatura. E a ordem é não demorar. Devem durar cinco minutos no máximo, deixando o sabonete especial, que não agride a pele, apenas para mãos, pés e genitais. Bucha e esfoliantes? Jamais.
No caso de bebês, um erro é deixar o sabão na água da banheira, dando chance para ele penetrar pelas "frestas do muro", lembra? O correto é passá-lo no finalzinho desse banho rápido, enxugando a criança logo em seguida.
Sem perfume, nem corantes, o hidratante é peça-chave no controle dessa doença crônica. Deve ser usado obrigatoriamente após o banho e, depois, várias outras vezes ao dia, sem a menor economia. A pele de uma criança deve consumir 500 gramas do produto por mês e a de um adulto, 1 quilo.
Mas talvez o maior cuidado seja driblar quem, em volta, não entende que essa é uma doença não contagiosa. Aliás, é o contrário: por ser tão vulnerável, é a pele de quem tem dermatite atópica que pode se infectar com facilidade. A ameaça, portanto, são os outros. Principalmente quando o seu olhar é preconceituoso.
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