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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Hipertensão: reduzir a pressão também ajuda a prevenir o diabetes

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/11/2021 04h00

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Evitar uma doença renal crônica, um infarto ou um AVC, o acidente vascular cerebral, já seria motivo de sobra para uma pessoa hipertensa tratar de colocar a sua pressão arterial no prumo, abaixo dos 140 por 90 milímetros de mercúrio, isto é, menor do que 14 por 9 mmHg.

Há menos de uma semana, porém, um trabalho publicado na revista científica The Lancet sugeriu uma vantagem extra a quem fizer esse esforço. A manchete seria a seguinte: medicamentos comuns usados para diminuir a pressão arterial conseguiriam prevenir que milhões de pessoas desenvolvam diabetes tipo 2, mais dia, menos dia.

Realizado por equipes das universidades de Oxford e de Bristol, no Reino Unido, é o que os cientistas chamam de uma metanálise — algo que, se bem feito, impõe respeito no mundo acadêmico. Isso porque, na metanálise, os autores agrupam vários estudos e fazem uma espécie de resumo de tudo o que já foi achado para responder determinada pergunta.

A questão da vez era se domar a hipertensão em pessoas que ainda não tinham diabetes seria uma boa pedida para afastar o risco de essa doença dar as caras. Mais do que isso: se alguma classe de medicamento anti-hipertensivo seria melhor para esse propósito.

Diga-se, o material usado pelos britânicos foi de primeira grandeza. Eles compararam 19 ensaios clínicos sérios, realizados entre a década de 1970 e os primeiros anos 2000 — porque, cá entre nós, não adianta falar de boca cheia que é uma metanálise pegando um punhado de pesquisas mal realizadas, o que decididamente não foi o caso.

Com a soma dos estudos comparados, os autores da metanálise acessaram os dados de saúde de mais de 145 mil pessoas ao redor do mundo e toda essa gente foi acompanhada pelo período médio de cinco anos. Ora, um bom intervalo para ver quem, ao longo desse tempo, foi diagnosticado com diabetes ou não.

"Boa parte dos hipertensos são indivíduos com excesso de peso e sedentários que, por isso mesmo, apresentam resistência ao hormônio insulina, aquele que coloca o açúcar que está na circulação para dentro das células", observa o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo), a quem procurei para comentar o artigo recém-lançado. Recentemente, ele realizou o Diacordis, um curso de imersão para médicos sobre os elos entre o diabetes e a saúde cardiovascular.

Mas atenção: o texto recém-publicado frisa que não seria apenas uma questão de existirem fatores de risco comuns entre as duas condições. A própria hipertensão já seria um empurrãozinho para a glicemia ir para as alturas. E a conclusão é de que a redução de apenas 5mmHg na pressão sistólica — aquela indicada pelo primeiro número, o mais alto da medida —, já derrubaria o risco do diabetes tipo 2 em 11%. Nada desprezível.

Note que essa redução é relativamente fácil de se obter por meio de remédios ou até mesmo com mudanças no estilo de vida. Aliás, essa é a mensagem irretocável do trabalho: cuidar da hipertensão ajuda, sim, a evitar que esse problema traga outro, o diabetes. O elo entre as duas doenças precisa ser mais conhecido ou lembrado no dia a dia.

Contudo, os resultados de outra etapa do trabalho britânico merecem cautela. Nela, os cientistas colocaram 22 estudos lado a lado para investigar o impacto sobre o risco do diabetes das cinco classes de drogas mais comuns no tratamento da hipertensão. Cada uma age em um ponto da cascata de fenômenos fisiológicos que fazem a pressão subir.

Segundo o artigo, duas delas seriam melhores do que as outras, enquanto algumas seriam uma espécie de tiro pela culatra. Mas... será mesmo? Ou ainda: será que, na prática, essa comparação dos remédios tem serventia? Entenda direito essa segunda parte história.

Seria um anti-hipertensivo melhor do que outro?

Esta foi mais uma pergunta levantada pelos pesquisadores britânicos. A resposta da metanálise foi de que remédios chamados de inibidores da ECA (enzima conversora de angiotensina), bem como os BRAs (bloqueadores do receptor de angiotensina 2), teriam um efeito mais expressivo. Ambos diminuiriam o risco do diabetes em 16%.

Anti-hipertensivos conhecidos como bloqueadores dos canais de cálcio, por sua vez, não mostraram qualquer efeito protetor no que diz respeito ao diabetes.

Já drogas como betabloqueadores e diuréticos, que completam a família dos principais fármacos para controlar a pressão, parecem até provocar o contrário: um ligeiro aumento da probabilidade de a pessoa ficar diabética. Mas há ressalvas.

A primeira delas é que, como já foi explicado, a metanálise comparou trabalhos realizados entre os anos 1970 e 2000. "Os betabloqueadores usados nessa época interferiam nas células produtoras de insulina no pâncreas. No entanto, as novas gerações dessa classe só agem nos vasos", explica Barra Couri.

O pior é que esse tipo de informação às vezes assusta quem precisa usar um remédio desses. "E, para quem sofreu um infarto, tomar um betabloqueador é fundamental. Não tem conversa. Idem, para quem tem insuficiência cardíaca", afirma Barra Couri.

É na mesma linha a opinião do cardiologista Andrei Carvalho Sposito, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas): "Apesar de, nesse estudo, haver um discreto aumento na incidência de diabetes entre os usuários de diuréticos, esses remédios são instrumentos úteis e amplamente disponíveis para controlar a pressão arterial".

Para o médico, a prioridade é sempre evitar o infarto ou o AVC. Faz sentido:a ameaça de alguém com hipertensão passar por um perrengue desses é bem maior do que a de ter diabetes por tomar diurético, por exemplo.

Por fim, a comparação entre as drogas perde valor quando percebemos que é mais fácil encontrar agulha no palheiro do que um hipertenso que esteja sendo tratado com uma única classe delas. Pois a Medicina se deu conta de que juntar doses menores de dois ou três anti-hipertensivos de classes diferentes é mais eficaz do que engolir um só deles e isso não aumenta efeitos colaterais.

O que a pressão alta tem a ver com o diabetes

Ver a pressão subir é o destino de todos nós. O sangue precisa dessa força para circular por todo o corpo, entregando nutrientes e oxigênio.

E para garanti-la, ainda mais quando a idade avança, é acionado o sistema renina-angiotensina-aldosterona, um trio de hormônios que, atuando em cascata, regula a pressão para o alto quando faz um dia de calor e os vasos sanguíneos se dilatam ou quando você toma menos líquido do que deveria e o volume de sangue despenca. São duas situações em que as artérias necessitam, literalmente, de um aperto. "Ou cairíamos duros na rua", brinca Barra Couri.

A questão, como o endocrinologista lembra, é que o organismo humano evoluiu em tempos nos quais os nossos ancestrais não consumiam sal, nem ficavam sem exercício físico. Hoje, no entanto, ingerimos alimentos cheios de sódio, somos sedentários e temos obesidade. E o sistema renina-angiotensina-aldosterona continua lá, fazendo o papel dele, mas se somando a todos esses fatores que disparam a pressão. Consequência: ela sobe demais.

A angiotensina, em especial, age nas células endoteliais, que revestem os vasos sanguíneos. Elas, então, sinalizam para músculos ao seu redor para que se contraiam, estreitando o caminho do sangue que, daí, irá passar com maior pressão. Só que, por causa da contração constante das paredes arteriais, as células do endotélio se inflamam. E a inflamação silenciosa, em mais um dominó de reações, provoca a resistência à insulina, a qual seria a antessala do diabetes.

"O desafio é que a maioria dos brasileiros não mede a pressão arterial regularmente", constata Barra Couri. "E muitos daqueles que sabem que são hipertensos não alcançam suas metas de redução de pressão."

Mas tenha certeza de que conseguir a proeza é proteger o coração duas vezes. Porque é ele que sofre no final das contas, seja pela hipertensão em si, seja pelo diabetes, doença considerada uma das principais causas de infarto, se não for a maior delas.