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Eu e você temos muito o que aprender sobre a saúde da pessoa transgênero
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O que você acharia se, ao seu lado em uma sala de espera para o exame de mamografia, por exemplo, estivesse uma mulher trans? Adianto: ela faria muito bem de estar ali. Outubros deveriam ser mais do que rosas. Novembros deveriam ser mais do que azuis.
Estima-se que 1,9% da população brasileira seja transgênero, ou seja, mais de 4 milhões de pessoas. E, se não as encontramos em consultórios por aí, tem algo de muito esquisito.
Afinal, elas precisam de acompanhamento periódico e bastante disciplinado. No exemplo das mamas, qualquer mastologista seria capaz de atender essas pacientes, bem como qualquer cardiologista poderia avaliar sua saúde cardiovascular. Cadê, então, essa gente?
Foi o que me perguntei assistindo à aula da médica Lucia Alves Silva Lara durante o 59º Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia, na semana passada. Presidente da Comissão Nacional Especializada em Sexologia da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia) e professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), o seu assunto, ali no evento, foi o início do tratamento hormonal na transexualidade. Mas, nas entrelinhas, aprendi um bocado sobre os cuidados que essas pessoas precisariam ter com a saúde.
Aliás, aprendiz tardia que sou, adianto as desculpas: posso pisar em falso nas palavras e cometer gafes dolorosas. Preciso ser alfabetizada nesse tema e está aí outra coisa bem esquisita, já que escrevo sobre saúde faz tempo e sempre existiu o leitor ou a leitora transgênero.
Conhecer mais sobre essas pessoas é importante para todos. Estamos no mesmo barco da humanidade e só quero lembrar que não dá para pular fora dele nem que você queira. Podemos ser do tipo que só faz peso olhando a paisagem, que faz furo no casco da embarcação para todo mundo afundar ou que rema para algum lugar melhor. E a remada só vence a água se todo mundo faz movimentos na mesma direção.
No caso, é preciso que os médicos aprendam a cuidar dessa população. Que os cientistas produzam mais estudos sobre o seu organismo e o impacto do tratamento a médio e a longo prazo, porque os dados são escassos. Que a gente, que é paciente, verdadeiramente ache natural topar com uma pessoa transgênero em clínicas, hospitais, salas de espera. E, claro, que essa parcela de nós zele pela saúde, como qualquer pessoa.
Por definição
A incongruência de gênero existe e é cientificamente comprovada — quando a identidade de alguém não casa com o sexo do seu corpo ao nascimento. "É de extrema importância falar disso", concorda a professora Lucia Lara. "Assim como ressaltar que existem bases biológicas para essa condição, as quais foram muito bem estudadas em modelos animais." Ou seja, não é algo comportamental, como muitos imaginam preconceituosamente.
"Na maioria das vezes, as características de transexualidade se expressam ainda na infância", explica a ginecologista. Para ela, a prevenção de problemas começa exatamente aí. "Para o bom desenvolvimento da criança, não devemos tolher sinais de transexualidade, mas tampouco devemos reforçá-los", diz ela. "A especulação feita pelos adultos leigos causa transtornos graves. Sabemos, por estudos científicos, que apenas 15% dessas crianças serão trans na vida adulta. A maior parte será hétero, homo ou bissexual."
Portanto, é um erro grosseiro ver o menino que calça os sapatos da mãe ou a menina que prefere roupas de garoto e tanto inibir esses comportamentos quanto já sair falando que é transgênero. "Há critérios sérios para essa afirmação e, para se ter qualquer certeza, a criança deverá ser acompanhada por profissionais de saúde e de educação preparados", opina Lucia Lara.
Hora da mudança
No Brasil, uma vez confirmado que a pessoa é transgênero, só a partir dos 18 anos é que pode ser iniciada a hormonização cruzada, dando hormônio feminino para a mulher que nasceu em um corpo masculino e hormônio masculino para o homem que nasceu em um corpo feminino.
No meio dos exames prévios para checar a saúde física e mental e uma série de orientações, deve-se incluir o aconselhamento reprodutivo. "Homens trans que desejam ter filhos conseguem engravidar se suspendemos por um tempo o uso da testosterona, o hormônio masculino", explica Lucia Lara. "Mas mulheres trans, por causa das altas dosagens de hormônio feminino, correm o risco de se tornarem inférteis. Logo, se sonham com filhos, devem discutir a possibilidade do congelamento de esperma antes de começarem o tratamento."
No homem trans
A mesma testosterona que irá aumentar a massa muscular, fazer crescer pelos por todo o corpo e mudar o tom da voz também provocará mudanças no endotélio, o revestimento interno dos vasos sanguíneos, favorecendo tromboses. A pressão arterial também terá tendência a subir e deverá ser monitorada sempre.
Em matéria de saúde cardiovascular não para por aí, como conta Lúcia Lara: "Um estudo que acompanhou homens trans por um período médio de nove anos observou um aumento do LDL, o mau colesterol, bem como dos triglicérides. Para complicar, o HDL, que as pessoas chamam de bom colesterol, diminuiu."
Só esse conjunto de alterações já apontaria para a necessidade de ficar de olho no coração, ainda mais que o homem trans às vezes apresenta uma elevação de glicose, aumentando o risco de diabetes por tabela. Para completar, notam-se diferenças até mesmo na quantidade de glóbulos vermelhos no sangue — ela sobe. "E essa população pode ter mais trombose", conclui a professora.
Por essas e por outras, além de checar as taxas hormonais de tempos em tempos, é recomendável dosar glicose, enzimas hepáticas e gorduras no sangue, mais ou menos a cada seis meses.
O hormônio masculino em um corpo com uma base biológica feminina também pode provocar ressecamento nas mucosas dos genitais, o que eventualmente atrapalha as relações sexuais com penetração — o homem trans pode ser gay e sair com homens.
Aliás, aí mesmo é que se torna fundamental realizar o exame de citologia, o popular Papanicolau. "O ginecologista, então, precisa ter a sensibilidade de oferecer a opção da auto-coleta, se notar que o espéculo, instrumento usado por ele no procedimento, seria capaz de evocar alguma memória traumática", pontua Lucia Lara.
Em relação às mamas, o paciente que não foi operado deve entrar no programa convencional de rastreamento de câncer, com direito à mamografia e tudo mais.
No entanto, o médico precisa ao menos palpar o tórax de homens trans que as operaram, por pura segurança. Afinal, sempre pode ter ficado um resquício de glândula mamária. "E não há estudo dizendo que a testosterona diminuiria o risco do câncer de mama", chama a atenção a professora.
Por fim, segundo a ginecologista, o tratamento com testosterona aumenta a irritabilidade em uma parcela dessa população. Vale perceber se isso está acontecendo e pedir ajuda, porque ninguém merece viver irritado.
Na mulher trans
O hormônio feminino estradiol, ao entrar em cena, faz a testosterona despencar e, com ela, a massa muscular, os pelos da barba... A gordura, em compensação, aumenta e dá formas femininas ao corpo.
Mas, assim como no homem trans, a ameaça de alterações metabólicas também aumenta, incluindo a probabilidade maior de tromboses. "Em geral, para as mulheres trans, pedimos os mesmos exames laboratoriais solicitados aos homens trans, mas acrescentamos a dosagem da prolactina", conta Lucia Lara. O aumento desse hormônio pode indicar tumores benignos na hipófise, glândula situada no meio do cérebro. Eles seriam um possível efeito colateral.
Por sua vez, se o tratamento hormonal aumenta a irritabilidade no homem trans, na mulher trans o risco aumentado é de depressão. Outra coisa: "A mulher trans tem próstata, mesmo sendo operada. Por isso, deve ser encaminhada ao urologista e seguir o programa de prevenção de câncer nessa glândula estabelecido pelo Ministério da Saúde", avisa a professora.
A gente também não pode se esquecer que qualquer um que nasce com corpo masculino tem mamas, que em princípio não se desenvolveriam. Mas, com o hormônio feminino na jogada, a mulher trans tem mamas desenvolvidas pra valer. Logo... "Ela vai ter que aderir às campanhas de rastreamento do câncer mamário como qualquer outra", informa Lucia Lara.
Nela, o risco desse tumor é maior do que nos homens trans e ligeiramente menor do que nas demais mulheres. Por isso, esperamos vê-la nas salas de espera da mamografia. Estamos juntas.
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