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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Ômicron: por que, afinal, ela aparenta pegar mais leve?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

08/02/2022 11h36

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Ninguém se engane: ômicron não é nada inocente. Responde por 431 brasileiros mortos só na segunda, dia 7 de fevereiro, e foram mais de mil mortes na sexta-feira (4). Mas a catástrofe poderia ser bem maior se, de um lado, a vacinação não tivesse avançado para conter a fúria de qualquer cepa de Sars-CoV-2 e, de outro, se a própria ômicron não levasse a uma patogênese diferente. Em palavras leigas, se a doença provocada por essa nova variante não evoluísse de uma maneira diversa em relação à de suas antecessoras.

Quem acaba infectado por ômicron, especialmente se já é vacinado, costuma ficar com a garganta em chamas e o nariz escorrendo feito um chafariz. Nos pulmões, porém, a variante parece pegar mais leve.

Agora, um trabalho publicado na revista científica Nature, liderado por cientistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e realizado ao lado de pesquisadores japoneses, americanos, suíços, equatorianos e sul-africanos, olha para o momento exato em que o vírus invade as células para responder: afinal, por que a ômicron pode causar uma covid-19 ligeiramente diferente?

Aliás, foi a pergunta que fiz, no mês passado, ao infectologista Alberto dos Santos de Lemos, do Laboratório de Pesquisa em Imunização e Vigilância em Saúde da Fiocruz, e médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Na ocasião, ele me contou que todos aguardavam estudos para entender melhor o que se passava. Depois, lembrando do questionamento, foi o primeiro a me enviar a pesquisa quando ela saiu na Nature há exatamente uma semana, esclarecendo uma parte da resposta. Também me ajudou a decifrar siglas, moléculas e segredos de ômicron nas linhas do artigo, que aborda inclusive a vocação dessa variante para escapar de anticorpos monoclonais e vacinas.

Mas adianto: ômicron não escapa quando há a terceira dose, aquela de reforço, principalmente se pelo menos uma das três injeções foi de uma vacina de RNA mensageiro, como a da Pfizer.

Veja comentários do médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto e mais no UOL News:

Na hora da invasão

A gente sempre fala que o coronavírus invade nossas células usando a sua famosa proteína "S", ou spike, feito uma chave na fechadura para destravar a sua entrada.

A fechadura, no caso, é o receptor de uma enzima, a ECA2, que está presente na membrana celular. Só que a história, repetida inúmeras vezes ao longo da pandemia, costuma parar por aí, em uma versão simplificada que geralmente basta para qualquer um entender a situação.

No entanto, para compreender a ômicron, é preciso preencher uma lacuna nesse enredo com uma sigla imensa, a TMPRSS2 —ufa, perdão! Alberto de Lemos explica do que se trata: "É uma proteína que também está nas membranas de nossas células e que se funde com a spike do vírus, auxiliando a sua entrada".

Ou seja, se o receptor da ECA2 seria, na analogia de sempre, a fechadura, então a sigla sem fim — a TMPRSS2 — seria comparável a uma senha.

Pois bem: os cientistas de Cambridge e seus colegas confirmaram que ômicron tem muita afinidade com o receptor da ECA2, o que em tese seria um belo ponto de vantagem para o vírus.

Em compensação, essa variante não é capaz de usá-lo direito por falta do equivalente à senha, já que, graças a uma ou a algumas de suas diversas mutações nos genes da spike, acabou dando um tiro no pé e deixou de se fundir tão bem com a TMPRSS2 — fusão que as cepas anteriores tiravam de letra.

"Essa proteína por trás da sigla, por sua vez, é extremamente presente nas células das vias aéreas inferiores", diz o infectologista, se referindo à traqueia, aos bronquíolos e aos alvéolos pulmonares. Ou seja, justamente nesse território o vírus, sem fundir direito a sua proteína "S" com a TMPRSS2, encontra dificuldade para entrar nas células, dentro das quais se multiplicaria. O mesmo é observado no intestino, diga-se.

Assim, pelas bandas intestinais e pelos tecidos pulmonares, o Sars-CoV-2 em sua novíssima versão ômicron se replica devagar. Contudo, nas vias aéreas superiores — isto é, nas cavidades nasais, na faringe e na laringe —, o papo é outro. De acordo com o estudo, nelas, a ômicron se replica com a mesma velocidade de costume, igualzinho à delta, por exemplo.

"Isso porque o coronavírus tem outros meios para nos invadir", explica Alberto de Lemos. Um desses caminhos atende por endocitose. "No caso, a própria célula da mucosa nasal, por exemplo, captura o vírus e o coloca para dentro", descreve o médico. "Suas proteínas se combinam com as do Sars-CoV-2 e criam uma espécie de canal."

Se a endocitose é um bom jeito para o causador da covid-19 se replicar à vontade nas vias aéreas superiores, onde não há tanta expressão da TMPRSS2 para ele entrar pelos receptores da ECA2, nos pulmões esse caminho alternativo termina sendo um desvio, mais longo e mais lento. Azar do vírus, sorte nossa.

Portas fechadas

Além disso, pelo caminho tradicional, usando TMPRSS2 e, com isso, entrando pelos tais receptores da ECA2, surgia o que os cientistas chamam de sincício — uma união de células que originalmente estavam separadas. Isso favorecia ao vírus sair de uma e entrar em outra.

"Em mais uma analogia, imagine uma casa em que o Sars-CoV-2 entrou na sala", pede Alberto de Lemos. "Uma das reações de defesa de uma célula quando é invadida desse modo é fechar as portas dessa sala para o vírus não fazer estragos ainda maiores. No sincício, porém, as portas ficam abertas e ele pode entrar rapidamente em todos os cômodos." Na prática, isso quer dizer que se alastra pela vizinhança e assim segue, conquistando áreas cada vez maiores. Com ômicron, porém, isso não é tão observado nos pulmões.

E a gente com isso?!

Conhecer detalhes do que ômicron faz ou deixa de fazer não resulta em ganhos imediatos para os pacientes. Mas também não podemos dizer que o estudo publicado na Nature seja mera curiosidade. "No mínimo, ele tira a nossa dúvida ao mostrar que o comportamento do vírus nas vias aéreas inferiores é realmente diferente", diz Alberto de Lemos.

Sem contar que pesquisas assim, de ciência básica, pavimentam a oportunidade para outras investigações, que poderão levar a tratamentos mirando, por exemplo, a tal TMPRSS2.

Além disso, o trabalho reforça o alerta geral de que a transmissibilidade é alta, até porque a replicação de ômicron segue inabalável no nariz e na garganta de cada indivíduo infectado. "O caminho para expelir o vírus, quando ele está nas vias aéreas superiores, é literalmente mais curto. E até isso conta", ensina o infectologista.

Só para sublinhar, nas últimas 24 horas foram 68 mil diagnósticos confirmados no Brasil. Se a ômicron não tivesse dificuldades com a TMPRSS2, haveria muito mais mortes. E não que as mais de 400, nesse mesmo período, sejam pouco a se lamentar.

Atenção: poderá não ser assim para sempre

Uma coisa precisa ficar na cabeça: um vírus mutante como o Sars-CoV-2 não pega uma espécie de estrada e segue por ela até o final, sabe-se lá quando. "Suas mutações são completamente aleatórias", confirma Alberto de Lemos.

Portanto, se ele foi por esse caminho onde encontra obstáculos para se fundir com a TMPRSS2, talvez uma nova variante, amanhã ou depois, some a facilidade de transmissão atual, mas resolvendo essa questão.

A própria pesquisa aponta a melhor saída para diminuirmos a chance de o causador da covid-19 realizar essa mudança de rota em direção contrária ao nosso sossego: completar o esquema vacinal para ômicron não circular tanto. Aliás, sensacional os cientistas terem demonstrado que as três doses são matadoras. Para o vírus, bem entendido.