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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Dormir mal: isso tira o corpo do ritmo e favorece doenças como o diabetes

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

18/02/2022 04h00

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Bom dia, boa noite, para quem? Vamos parar de graça, porque oito em cada dez de nós dormem mal, muito mal. Quase metade, ou 44%, já brigava com o travesseiro até mesmo antes da pandemia.

Mas, é claro, entre as coisas boas que o maldito Sars-CoV 2 roubou de muita gente estão as noites bem dormidas. Seis em cada dez indivíduos agora sabem o que é ficar horas da madrugada em claro e só 11% declaram que dormem feito um anjo do aparecimento da covid-19 para cá.

Entre os que não dormem bem, quase metade acorda antes de o alarme do despertador e metade, também, abre os olhos no meio da noite. Alguns — um terço das pessoas — levam mais de meia hora até pegarem no sono de novo. Não à toa, 61% amanhecem se sentindo um caco. E, para a maioria, isso acontece três vezes por semana ou mais.

As informações são de uma pesquisa do Instituto IPSOS e da área de Consumer Healthcare na Sanofi que enviaram um questionário online a mil homens e mulheres entre 18 e 55 anos das classes A, B e C de todas as regiões do Brasil. Números quase sempre são frios feito cama sem cobertor, mas é muito provável que você se reconheça nesse retrato de um país insone.

Talvez negligencie o problema, empurrando a solução para uma próxima noite. Mas o cansaço, a falta de foco e a dorzinha no corpo — sinais que mais associamos à falta de um repouso adequado —-são até o de menos. Bem pior é o risco de diabetes, de infarto, de obesidade, de pressão alta, de doenças neurodegenerativas.

"As pessoas não se dão conta porque essas consequências são a longo prazo", observa o médico fisiologista José Cipolla Neto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (Universidade de São Paulo) e um dos maiores especialistas brasileiros em ritmos biológicos.

"O funcionamento do corpo humano é de alguma maneira guiado por um determinado período dormindo e outro acordado durante as 24 horas do dia. O risco à saúde não está só na privação de sono, mas na vigília forçada, quando, em vez de adormecer, você usa o organismo em um horário que ele não está fisiologicamente preparado para aquilo."

Você precisa mesmo de oito horas de sono?

O que é privação de sono para alguém pode não ser para você. O meu organismo pode ser biologicamente programado para dormir menos do que as famosas "oito horas". No entanto, há quem necessite de dez horas bem dormidas e, se só conseguir dormir as famosas oito horas, sofrerá de todos os efeitos nefastos da privação de sono, sim.

"Além disso, existe o cronotipo", lembra Cipolla Neto. "Alguns indivíduos são matutinos. Eles adormecem cedo. Mas há gente com um organismo vespertino, que dorme mais tarde por natureza."

Há ainda um terceiro tipo, o indiferente. O importante é você entender que, se por imposição social, como a necessidade de trabalhar até altas horas, a pessoa do tipo matutino vai para a cama tarde da noite, isso também se torna danoso com o tempo, mesmo que ela consiga dormir todas as horas que tem vontade.

Quando você dorme menos do que deveria

Dois fenômenos cerebrais ocorrem enquanto você está adormecido. Um deles é literalmente uma limpeza, promovida pelo sistema glinfático — que, grosseiramente, seria como um sistema linfático exclusivo do cérebro.

Se você não dorme bem, essa faxina até vai acontecer, mas nunca do mesmo jeito. Ela poderá ser prejudicada pela claridade do ambiente. E, por falar em claridade, não menospreze a do celular levado para a cama.

"A irradiação luminosa da telinha tem um comprimento de onda que o nosso sistema nervoso central entende como sendo luz do dia", explica Cipolla Neto. É o que basta: mesmo que o quarto esteja na maior escuridão, o celular fará a glândula pineal, bem no meio do cérebro, interromper a secreção de melatonina, programada para a madrugada. Aí, tudo complica porque ela é o hormônio que regula os ritmos biológicos, informando o momento de cada coisa acontecer no corpo. Inclusive, a tal limpeza.

"O mais importante, porém, é que só à noite, durante o sono, há uma reorganização dos circuitos neurais", conta o professor. "O cérebro, afinal, está sempre se modificando com as experiências: seus neurônios guardam informações e apagam outras, retendo os aprendizados do dia anterior"

Atrapalhar esse trabalho é o suficiente para você não interagir direito ao longo do dia — as ideias parecerão fora de lugar e até o humor sairá afetado. Pior: noite após noite, não permitir que o cérebro se reorganize pode resultar em demência no futuro.

Sem contar que, como é a reorganização dos neurônios que prepara o cérebro para governar o resto do corpo no dia seguinte, diversas funções sob o seu comando são afetadas." Até a movimentação das vísceras pode ficar alterada", comenta Cipolla Neto. Quem diria, aquela digestão que já não é a mesma pode estar sendo influenciada pela insônia.

Quando você se força a ficar acordado

Parece a mesma coisa, mas não é. Não dormir é ruim. Agora, não dormir e ainda por cima insistir em fazer coisas, sejam compromissos sociais ou de trabalho como se estivesse sob a luz do sol, é bem pior. Ocorre, então, uma quebra dos ritmos do corpo.

"Em experiências com animais de laboratório, quando eu adianto ou atraso o seu relógio biológico simulando dia e noite em horários diferentes do que os do meio externo, noto que fica tudo bem", conta Cipolla Neto. "É como se fosse o jet lag de alguém que vai para um país com fuso horário diferente. Em no máximo dez dias, todos os os ritmos se regulam novamente conforme o ciclo dia-e-noite daquele lugar."

Mas, atenção, não é o que acontece quando você desloca apenas a hora de dormir e o resto continua igual, criando uma situação de conflito em que o seu próprio organismo fica com fusos diferentes.

Segundo Luiz Menna-Barreto, um dos pioneiros na área da cronobiologia no país, hoje professor da USP Zona Leste, o problema é velho conhecido, mas nestes tempos bicudos (e cansados) ele volta a ser mais debatido: o da dessincronizarão interna.

"O que é isso? Uma glândula secreta o seu hormônio regularmente, só que na hora errada", explica. "Portanto, não tem problema algum com essa glândula. A questão é que o seu hormônio atinge as células que são o seu alvo em um momento em que elas não conseguem reagir à sua presença."

É que, saiba, as membranas celulares estão sempre mudando ao longo das 24 horas — até elas! "No tecido muscular, a densidade de receptores capazes de captar o açúcar do sangue com a ajuda da insulina é diferente conforme o período do dia" , exemplifica. "Desse modo, você pode comer carboidratos sem exagero e, mesmo assim, se tornar diabético." Ou seja, o açúcar pode chegar nas células em uma hora em que seus receptores não estão no seu melhor momento e, daí, ficar sobrando na circulação.

Cipolla Neto complementa o exemplo: "O corpo humano é naturalmente programado para ter uma sensibilidade maior à insulina no período da manhã. Se você mexe com o sono, essa sensibilidade atrasa e começa a surgir uma resistência ao hormônio".

Não faltam trabalhos mostrando que as doenças do metabolismo — como o próprio diabetes, a hipertensão e a obesidade — têm muito a ver com esses desajustes.

Remédio não adianta

Engolir medicamentos para dormir, segundo o professor Cipolla Neto, não adianta. "O sono induzido por todas as drogas conhecidas não é fisiológico", avisa. Em outras palavras, é artificial e não serve para regular os nossos ritmos.

A única substância que seria capaz de promover um repouso natural seria a melatonina. "Mas, cuidado, ela só é indicada para alguns distúrbios do sono", avisa o professor. "Sem contar que a dosagem precisa ser individualizada pelo médico para não dessincronizar ainda mais o organismo."

O que resolveria então? Além das lições clássicas de higiene do sono — desconectar-se de obrigações um bom tempo antes de ir dormir, fazer algo para relaxar à noite, deitar-se em um quarto escuro, ambiente calmo, sem aparelhos ligados, nem barulho —, uma dica preciosa é observar-se.

Ao menos, é a sugestão do professor Luiz Menna-Barreto, que está para lançar pela Editora da USP um livro contando a trajetória da cronobiologia no Brasil.

"Não devemos cair na cilada de que a regularidade é sempre um bem, fazendo tudo na mesma hora ou no momento que dizem ser o melhor ou o mais saudável, porque não há uma receita única para todos", opina. "Se há dificuldade para dormir, podemos testar fazer refeições, estudar ou até praticar exercícios em horários diferentes, notando o que ajudaria mais o organismo a realizar a transição da vigília para o sono ao cair da noite."

Sim, como levamos nossas horas à luz do dia também influencia nisso. Mas, como reflete ainda o professor Menna-Barreto, "é um equívoco reduzir a solução do problema para o plano individual. Essa é uma doença da sociedade." Ou seja, esse mundo que não nos dá pausas está nos fazendo perder o sono. E a saúde.