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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Vamos aproveitar a trégua: a covid-19 ainda não é uma doença endêmica

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

15/03/2022 04h00

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Eu me sinto quase encabulada ao falar em trégua. Afinal, ontem mesmo, dia 14, a covid-19 matou 187 brasileiros e a média de mortes no país na última semana está em 415. Sendo realista, o vírus não nos acena com uma bandeira branca.

No entanto, depois um pico inigualável de casos catapultados pela variante ômicron do Sars-CoV-2, a gente respira mais aliviado até no sentido literal. Com o avanço da vacinação no país, muitos lugares não estão mais exigindo o uso de máscaras ao ar livre, o que neste momento parece bem razoável.

Em certos municípios, porém, o liberou-geral permite que as pessoas permaneçam sem o acessório até mesmo em locais fechados, o que a ciência e o bom senso julgariam precipitado. Não vou entrar neste mérito agora.

O fato é que voltamos a enxergar pelas ruas sorrisos que nos últimos dois anos ficaram tapados com um pano. Também enxergamos no horizonte um período de baixa incidência da infecção pelo coronavírus e de um número menor de mortes.

A mortalidade provocada por ômicron nunca foi lá essas coisas, pensam alguns, já prestes a comemorar um final feliz, achando que tudo se encaminha ligeiro para a covid-19 se tornar "endêmica". Está aí uma expressão que, no imaginário, passou a representar a transformação de uma doença ruim de lascar em algo suportável como uma tosse chata. Será?

Aproveite o intervalo sem máscara. Sinta o ar entrar livremente pelas narinas. Respire fundo. Não é bem assim.

Quando uma pandemia acaba?

Uma pandemia não acaba porque a gente quer, porque está de saco cheio, porque o saldo bancário está baixo, nem porque um governante foi tão legal que acelerou a vacinação no seu pedaço.

Uma pandemia acaba quando uma entidade global — obviamente, não o brasileirinho fulano, nem o brasileirinho beltrano, mas a OMS (Organização Mundial de Saúde)— declara um sonoro "fim". Aliás, da mesma forma como anunciou que o caos pandêmico tinha começado em 2020. Antes de a OMS se manifestar, nada feito.

Não é questão de formalidade. Nem o que a gente está esperando é o número de mortos cair até o que seria, digamos, tolerável. Aliás, essa é, sim, uma ideia mórbida.

"Não deveria existir um número admissível de mortes para uma doença que tem vacina, medidas preventivas não farmacológicas e, hoje em dia, um tratamento bem mais eficaz do que no passado", opina, taxativo, o infectologista Alberto dos Santos de Lemos, do Laboratório de Pesquisa em Imunização e Vigilância da Fiocruz.

Eu o procurei para trocar uma ideia, querendo entender se já estamos, como queríamos, perto do final da pandemia. Mas então, se não é um número de mortes baixinho que determinaria o fim, o que seria?

"O jeito de entender essa história é menos olhando para números e muito mais para um conceito que chamamos de emergência de importância internacional", diz ele, que é também médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

É quando uma infecção pode se disseminar ou já está se disseminando de uma maneira que ameaça a saúde pública. Portanto, não é apenas uma questão de ela se encontrar espalhada por todo o globo, nem de contabilizar o número de infectados.

A gripe, por exemplo: você certamente é capaz de encontrar pessoas gripadas em qualquer país e ela é uma infecção que ainda mata um bocado. "No entanto, o influenza normalmente não é considerado uma emergência de importância internacional", diz Alberto de Lemos. "Mas, de uma hora para outra, ele pode até se tornar."

O vírus da gripe é capaz de virar uma emergência se sofre uma mutação fazendo com que fique mais transmissível ou letal. Aí, a OMS vê que a saúde pública está perto de pegar fogo e direciona recursos e força de trabalho para responder à ameaça.

Uma das primeiras providências para controlar qualquer situação assim é a criação de um regulamento sanitário internacional, que os países assinam se comprometendo a uma série de medidas. No caso da covid-19 — até porque nem todos os cantos do planeta estão vacinados, favorecendo a má surpresa de novas variantes do coronavírus—, a doença está longe de deixar de ser uma emergência internacional.

Endêmico não quer dizer bacana

Há duas alternativas para uma infecção parar de ser uma emergência dessas. Uma delas é o culpado desaparecer — quem dera... Segundo Alberto de Lemos, o Sars-CoV-1, que surgiu em 2002 antecedendo o coronavírus atual, aparentemente tomou chá de sumiço.

"Acredita-se que o Sars CoV-1 foi eliminado porque, na época, conseguiram isolar as pessoas contaminadas na China, sendo que muitas delas morreram." Ou seja, o vírus ou foi embora junto ou não encontrou espaço.

Desta vez, porém, foi bem diferente. Agora que ganhou o mundo, o Sars-CoV-2 deve permanecer no mapa. Na melhor das hipóteses, a covid-19 será mesmo uma doença endêmica, isto é, perene, que não larga o nosso pé. "E com um número mais ou menos fixo de casos todos os anos", diz Alberto de Lemos, ensinando outra característica das endemias.

E, olha, esse número não precisa ser necessariamente baixo. Lembre-se da endêmica gripe. Todo ano, a OMS já sabe que serão cerca de 1 bilhão de casos confirmados. De 3 a 5 milhões deles serão graves e exigirão hospitalização. Até 650 mil pessoas morrerão. Logo, conviver com uma doença endêmica não é um paraíso. Nem mesmo quando falamos em gripe.

Outro esclarecimento: para ser endêmica, a distribuição de casos não precisa ser igual por todos os meses. Muitas vezes eles se concentram em uma estação. Com o calor e as pancadas de chuva do verão, a dengue já é aguardada em nosso país. Não que, por ser aguardada, seja suave pegar dengue.

Aliás, eu e você correríamos das doenças endêmicas que temos no Brasil — malária, Chagas, tuberculose, entre outras do mesmo naipe. E, espero, continuaremos tomando as medidas para escapar da covid-19 quando, lá adiante, ela se tornar endêmica. Lá adiante...

Para ser endêmica é preciso um tempo

Vale repetir: para ser endêmica, uma doença precisa de uma quantidade mais ou menos igual de casos a cada ano. E, lógico, ainda não tivemos nem sequer intervalo de observação suficiente para saber se o número de infectados pelo coronavírus vai se estabilizar assim. Paciência.

Será que o período de relativa calmaria que vivemos pode se estender até chegarmos lá? "Vamos torcer para que sim", responde o doutor Alberto de Lemos. "Mas, se uma nova variante surgir em qualquer lugar distante, em 24 horas ela poderá estar aqui", ele lembra.

Se isso acontecer, teremos de voltar dez casas no tabuleiro. E, por exemplo, retomar a máscara para sair por aí. Nem adianta, contrariado, argumentar que condições como infarto matam mais do que a covid-19. Não dá para comparar doenças do estilo de vida com infecção. Você não passa sua artéria entupida para o vizinho no elevador.

"Mas dá para entender o desânimo. Essas medidas estão durando muito tempo e cansam", reconhece o infectologista da Fiocruz. "O irônico desse cansaço é que, por causa dele, algumas pessoas começam a se descuidar."

Por isso, torno a dizer: aproveite. Sinta o ar entrar nas narinas. Respire fundo. Sorria mostrando os dentes. Em períodos assim, encha-se de ânimo para aguentar a gangorra que talvez a gente tenha pela frente.