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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Vacinas contra covid-19: elas são mesmo seguras para o coração?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

29/03/2022 04h00

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Vou dar a resposta de cara para aliviar o seu peito: as vacinas que nos protegem da devastação que o Sars-CoV 2 pode causar no organismo são bastante seguras e seus benefícios, inclusive do ponto de vista do sistema cardiovascular, superam de longe qualquer efeito adverso.

Talvez você já tenha ouvido algo parecido sobre a vacinação contra a covid-19 e, mesmo assim, continuou ressabiado diante de histórias de trombose em quem tomou o imunizante de vetor viral, que é o da AstraZeneca, e principalmente diante do risco de as vacinas de RNA mensageiro, como a da Pfizer, provocarem miocardite.

Digo principalmente porque a inflamação do miocárdio, o músculo que forma o coração, é o pesadelo que sempre volta a assombrar e ser o assunto da vez quando surge a bela chance de imunizar as crianças ou ter a quarta dose da vacina para reforçar a proteção dos idosos, por exemplo.

Quem já apresenta algum problema no coração pode tomar qualquer vacina? E quem já teve uma miocardite no passado corre algum perigo maior se receber a da Pfizer? Quando a pessoa assustada procurava o seu cardiologista com esse tipo de pergunta — sendo perfeitamente natural ter dúvidas nesse contexto —, ela nem sempre saía do consultório confiante.

"O cardiologista podia recomendar a vacinação, mas sem ter todos os argumentos favoráveis, nem saber dar orientações com total clareza. Afinal, ele não é um especialista em vacinas", comenta João Fernando Monteiro Ferreira.

Médico do InCor (Instituto do Coração) em São Paulo, e professor da Faculdade de Medicina do ABC, a brincadeira entre seus pares é que João Ferreira acabou com as férias de janeiro de alguns colegas. Isso porque, ao assumir a presidência da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), ele logo convocou um grupo de especialistas para organizar todas as evidências científicas a respeito da segurança cardiovascular das vacinas contra a covid-19.

As conclusões, publicadas em artigo científico, foram divulgadas aos cardiologistas do país em um webinar realizado na quinta passada, dia 24. Acho que vale a pena compartilhar a discussão.

Noutro dia, ouvi de um médico que é notoriedade na pesquisa da covid-19 que o quiproquó em torno das vacinas seria, em parte, provocado pelo excesso de informação a respeito do funcionamento delas.

Ora, ninguém embarca no avião, argumentava o cientista, duvidando de que ele é capaz de voar só por não conhecer o mecanismo de suas turbinas. Nesse raciocínio, deveríamos confiar na vacinação como sempre fizemos, sem exigir esclarecimentos sobre a proteína S do coronavírus e outras minúcias.

Mas, na ocasião, rebati que a aeromoça não passa por você dizendo que talvez aquela aeronave despenque. E, se entendem a minha comparação, em dado momento teve médico, até cardiologista, difundindo em rede nacional e em rede social que as vacinas poderiam não ser tão seguras. Então, divulgar os achados do time montado na SBC é, sim, importante para nos fazer voar mais tranquilos na direção do fim da pandemia.

A miocardite é uma agulha no palheiro

O alarde aconteceu em julho do ano passado, quando o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), nos Estados Unidos, relataram uma possível associação entre as vacinas de RNA mensageiro, como a da Pfizer, e casos de miocardite.

Hoje, os estudos apontam oito, dez, doze diagnósticos, quando muito, a cada 1 milhão de pessoas vacinadas. No entanto, se você olha apenas para rapazes adolescentes entre 12 e 17 anos, essa incidência aumenta e alcança 32 casos por milhão ou até 66 casos por milhão — e, aí, depois da segunda dose. Não, ainda não há dados sobre o que acontece após a terceira dose, que boa parte dos jovens brasileiros já recebeu.

De qualquer modo, esses números indicam que a miocardite é uma agulha no palheiro: tamanha a sua raridade que só foi possível achá-la a partir do momento em que uma quantidade enorme de pessoas já tinha sido vacinada.

Este é um esclarecimento importante: os casos de miocardite não escaparam dos olhos dos cientistas porque as três fases de pesquisa que levaram à aprovação da vacina de RNA mensageiro foram aceleradas pela pandemia. Os critérios de segurança foram extremamente rigorosos.

No entanto, hoje estamos no que se chama fase 4 — é quando um medicamento já lançado é monitorado, sendo possível encontrar efeitos adversos raros, uma vez que está sendo dado a um grande número de indivíduos. Sempre foi assim.

Mas um mistério é notar que, nos homens, a incidência de miocardite diminuiu na medida em que eles são mais velhos. E é mais baixa em mulheres de qualquer faixa etária. "Ninguém consegue ainda decifrar esse fenômeno, mas é provável que ele tenha uma relação hormonal", contou Jorge Kalil Filho, diretor do Laboratório de Imunologia do InCor, no webinar da SBC.

E por que esses casos aparecem com a vacina de RNA mensageiro apenas? "A minha suspeita é que isso tenha a ver com a proteína S do vírus", respondeu o imunologista. "Ela causa complicações na área da cardiologia e na da neurologia mais ainda", informa. "E o que sabemos é que as vacinas de RNA mensageiro induzem o nosso organismo a produzir uma quantidade elevada de proteína S".

E se a pessoa tivesse o problema antes?

"Outros vírus bastante comuns também causam miocardite, como o influenza da gripe e alguns que estão por trás de problemas gastrointestinais", lembra a cardiologista Carisi Polanczyk, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e coordenadora do grupo de trabalho da SBC que avaliou o impacto das vacinas no coração.

Segundo ela, nesse caso a inflamação é desencadeada pela toxicidade dos próprios vírus nas células do músculo cardíaco. Aliás, outras vacinas também podem causar miocardite e —ainda bem! — as pessoas nunca fizeram o escarcéu de agora. Por exemplo, a da gripe já citada, a da varíola e a da hepatite B. Mas essa inflamação, de acordo com um levantamento dos Estados Unidos, representa 0,1% das notificações de reações adversas da vacinação.

"E, na maioria das vezes, a miocardite se resolve sozinha", acrescenta a doutora Carisi. "Existem casos que passam até despercebidos. A gente os descobre depois porque pede uma ressonância e vê a cicatriz."

Mas aí paira a dúvida: será que quem já teve uma miocardite por outros vírus ou vacinas teria um coração mais sensibilizado? "Disso a gente não sabe", reconhece a médica.

No entanto, ela teve acesso aos resultados de estudos que devem ser apresentados pelo American College of Cardiology até o final desta semana. "Eles compararam quem teve uma miocardite no passado e tomou a vacina de RNA mensageiro e quem nunca teve miocardite e foi vacinado. A incidência de problema provocado pela imunização foi igualmente rara nos dois grupos."

Em todo caso, durante o webinar, a orientação do professor Jorge Kalil foi para que pessoas que desenvolveram miocardite por causa da covid-19 ou pela vacina contra o Sars-CoV 2 tivessem prescrição para tomar a CoronaVac nas doses de reforço.

A justificativa: "De todas, essa é a vacina com a resposta mais fraca, tanto que não protege direito os idosos. Mas, se existe uma vantagem nisso, é ser mais segura para esses casos específicos de quem desenvolveu uma miocardite por causa da proteína S do Sars-CoV-2".

Quando a miocardite complica?

"A inflamação pode acometer o coração como um todo, mas o maior problema parece ser quando acontece no ventrículo esquerdo", ensina o cardiologista Múcio Tavares de Oliveira, também do InCor e do grupo que analisou as vacinas na SBC. "É que ela costuma provocar a morte de células ali. No final, se a área com células mortas é relativamente grande, isso pode gerar uma dificuldade para bombear o sangue".

Em outras palavras, levar a uma insuficiência cardíaca. O doutor Tavares, porém, ressalva: "Se a miocardite provocada pelas vacinas da covid-19 é rara, os casos em que ela evoluiu a ponto de causar essa disfunção são mais raros ainda."

Quem tem um problema cardíaco pode se vacinar?

A resposta do doutor Múcio — em total acordo com o artigo que ajudou a escrever — é um sonoro sim. "Primeiro porque, se a pessoa com qualquer problema cardiovascular pegar a covid-19, a probabilidade de o seu quadro se tornar grave é alta", lembra.

"Além disso, quem contrai o Sars-CoV 2 tem um risco aumentado para toda sorte de problema tratado pelos cardiologistas, a começar pela própria miocardite", diz ele. De fato, são até 450 casos a cada 1 milhão de infectados. "É um número incomparavelmente maior do que o de episódios causados pela vacina", avisa.

Sem contar outras condições. Afinal, entre cada 1 mil pessoas com covid-19, surgem em média vinte casos a mais de arritmias, doze a mais de insuficiência cardíaca, dez sujeitos com tromboses graves, nada menos do que sete infartos a mais também. Tudo isso como bônus da infecção em si. O coronavírus decididamente não tem dó do nosso coração. Melhor, bem melhor tomar a vacina — a de RNA mensageiro ou outra, aquela que chegar em seu braço.