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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Controlar o diabetes ajuda alguém a sair da depressão? Tudo indica que sim

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/08/2022 04h00

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Depois da longa espera de praxe, o homem finalmente tinha conseguido a consulta psiquiátrica. Sentindo dificuldade para se concentrar e trabalhar como antes, uma certa letargia para cumprir tarefas, irritabilidade e, principalmente, um cansaço frente a tudo e a todos que lhe roubava o ânimo para fazer as coisas de sempre, ele cismou: precisava urgente de um antidepressivo para lhe arrancar daquele buraco.

Para sua sorte, à sua frente estava o psiquiatra Maurício Rossini que, além de atuar ali na rede pública, no CAPS (Centrode Atenção Psicossocial), trabalha desde 2017 no Centro Especializado em Obesidade e Diabetes Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.

Talvez por causa dessa segunda experiência, foi a vez de o médico cismar ao ouvir da esposa daquele paciente que ele tinha diabetes: como será que estaria o controle dessa doença?

O sujeito, de fato, voltou para casa com uma prescrição. Mas não era a que ele tanto queria. O médico tinha solicitado um exame de hemoglobina glicada que, ao ficar pronto, escancarou um controle do açúcar no sangue muito mal feito.

O conselho do psiquiatra para ele cuidar disso se quisesse melhorar a cabeça entrou por uma orelha e saiu por outra. Incrédulo, o senhor insistia no antidepressivo. Mas a mulher deu-lhe um pito no próprio consultório e, num ultimato, pediu que ele passasse a se responsabilizar pelo diabetes.

Tempos depois, seguindo o tratamento que já tinha sido orientado por outra equipe para domar a glicemia, o homem voltou ao psiquiatria. Era outro: dormia o sono dos justos, voltou a ser produtivo no trabalho e, principalmente, aquela preguiça de viver tinha desaparecido.

Ouvi essa história quando perguntei a Rossini se o arsenal de medicamentos usados no diabetes poderia diminuir os sintomas depressivos. "Não tenho a menor dúvida disso", me disse o psiquiatra, para então fazer o relato.

As relações entre conviver com uma glicemia nas alturas e depressão, além do impacto do tratamento de uma doença na outra, foram o tema que lhe coube no último sábado, dia 13, ao participar do VIII Simpósio Transdisciplinar do Centro de Obesidade e Diabetes, organizado, claro, por sua área dentro do hospital.

Depressão e diabetes

Que as duas doenças andam juntas, isso ninguém discute. Tanto que quem tem diabetes apresenta uma probabilidade cerca de três vezes maior de desenvolver depressão.

Na outra mão, existem estudos apontando que uma pessoa deprimida corre maior risco de ser diagnosticada com diabetes ou de ver essa doença se agravar — e, aí, também porque a tendência é se alimentar de qualquer jeito, não sair para fazer exercícios, nem se cuidar direito, esquecendo de usar medicações, entre outros tropeços.

"Mas muitos atribuem a depressão apenas à descoberta de ter uma doença sem cura, que impõe mudanças na dieta, controle constante, uso de medicamentos pelo resto da vida", observa o médico.

Aliás, ele lembra, é a mesma explicação fácil que alguns encontram para a relação entre transtornos psiquiátricos e condições crônicas de modo geral: "Quando o indivíduo sofre de uma dessas doenças, ele tem 1,4 vez maior risco de desenvolver um problema como depressão ou transtorno de ansiedade", conta Rossini. "Mas, se tem duas ou mais doenças crônicas, esse risco se multiplica 2,3 vezes."

No entanto, ele não acredita que exista só o estresse dessa situação por trás — embora o estresse esteja envolvido até o último fio de cabelo na jogada.

"Alterações típicas de um organismo que está sempre estressado, observadas na região cerebral do hipocampo, na glândula hipófise bem no meio do sistema nervoso central e nas adrenais, que produzem o hormônio cortisol, surgem tanto em quem vive deprimido como em portadores do diabetes", reconhece.

Há, porém, outras boas hipóteses e, segundo ele, é possível que todas andem de mãos dadas — assim como a depressão e o diabetes "que não só têm vários sintomas em comum, incluindo emagrecimento repentino em alguns pacientes, como compartilham diversos fenômenos químicos".

Onde mora a nossa mente?

É uma boa provocação, a qual Maurício Rossini gosta de fazer. "A depressão não é uma doença do comportamento, o nosso olhar perante a vida. Ela tem bases químicas que não são nada etéreas. A inflamação do sistema nervoso central, por exemplo, é uma delas", diz.

Portanto, possivelmente seria até o contrário: esses mecanismos biológicos modulariam o nosso olhar diante dos fatos e azedariam feito vinagre as coisas que sempre consideramos doces na nossa existência.

Mas, por falar em doçura, o açúcar — ou melhor, a glicose no sangue — tem, sim, o seu lado amargo. Quando se acumula, caso do diabetes, provoca o que os médicos chamam de inflamação sistêmica. Em outras palavras, dos pés à tal da cabeça.

Inflamação baixinha, diferente daquela provocada por uma infecção, ela engana, porque não dá trégua. Fica ali, martelando. "E até que ponto essa inflamação pelo corpo não afetaria a mente?", é o que Rossini se pergunta.

Para entender seu questionamento, compara o cérebro a um equipamento de tevê por assinatura. "Ele decodifica os sinais que recebe e enxergamos as imagens na tela. Podemos buscar ajuda e mudar de canal para outro com uma programação mais agradável."

A questão, para ele, é a seguinte: "Ninguém, até hoje, sabe de onde está vindo esse sinal de transmissão. E talvez ele não venha só da cabeça. Provavelmente, aliás, não vem."

Hábitos, genética e condições físicas do pescoço para baixo devem ter o seu papel. E, se você mexe em um desses fatores, o sinal da mente melhoraria, modo de dizer. De concreto, o que se sabe: controlar o diabetes é aliviar a inflamação que amarrota o nosso prazer pelas coisas.

Confusão nos sintomas

Aliás, um ponto: não é toda pessoa deprimida que se arrasta tristonha pelos cantos ou que fica chorando do nada. "Pode acontecer. Mas a grande característica desse quadro é deixar de sentir ânimo pela vida", esclarece o psiquiatra.

Desse modo, é aquela figura que, sem necessariamente derramar uma lágrima, sempre gostou de ler, mas que está deixando os livros fechados na cabeceira. Ou o sujeito que, outrora bom de prosa, sente a energia lhe escapar ao começar um papo. Que troca o encontro com amigos que nunca perdia por se largar no sofá e só quer saber de olhar o teto.

Imagens não faltam. Em comum, expressam a ausência de gás para o que sempre nos deu gosto e gozo.

"Além de confundirem depressão com tristeza — sendo também, bom ressaltar, que nem toda pessoa que está triste se encontra deprimida —, a gente pode confundir sintomas próprios do diabetes com depressão." É, essa relação é de dar nó na cabeça.

No caso daquele paciente que deu adeus ao desânimo só por controlar a glicemia, provavelmente a fadiga e tudo o que sentia eram, na realidade, sintomas de um diabetes desembestado.

"Mas", vai logo avisando Rossini, "quando se trata de uma depressão maior, isto é, de um quadro de depressão pra valer, controlar o diabetes continua sendo importante para reestabelecer a saúde mental, mas não é suficiente. Quando é assim, precisamos de fato entrar com antidepressivos."

Seja como for, na opinião do médico a psicoterapia nunca deve ser descartada. "Ela ajuda a lidar com os sintomas de ambas as condições e com a ideia de ser portador de uma doença crônica feito o diabetes."

Tratar essa dobradinha

Para paciente e endocrinologista, o desafio é encontrar o tratamento do diabetes — combinando de maneira individualizada medicamentos, as várias formas de insulina usadas na reposição e mudanças de comportamento —, capaz de evitar oscilações bruscas do açúcar presente na correnteza sanguínea. A montanha-russa da glicemia não faz bem e até a mente sofre.

Por sua vez, o tratamento medicamentoso da depressão merece cuidados extras. "Muitos antidepressivos levam a um aumento de peso", afirma Rossini. Entenda: se os ponteiros da balança sobem demais, aumenta a resistência das células à insulina.

"Já algumas classes medicamentosas, como os antidepressivos tricíclicos, têm o efeito adverso de interferirem nas células-beta do pâncreas diminuindo sua produção de insulina", informa Rossini. Ou seja, podem ajudar no transtorno mental e piorar o diabetes.

Todo cuidado é pouco nesse jogo de varetas em que, mexendo em uma, tudo pode desabar.

O cuidado mais fundamental de todos, porém, é na consulta. O clínico que trata o diabetes deveria aplicar um questionário para notar se a pessoa está deprimida e, daí, encaminhá-la ao psiquiatra. O risco de depressão é notório e ela não ajudará nem sequer na aderência ao tratamento.

Já o psiquiatra ou qualquer outro médico diante de alguém pedindo antidepressivo deveria seguir o exemplo do doutor e, antes, afastar a dúvida: será que essa pessoa não tem diabetes? E, sem tem, será que está cuidando dele direito? O açúcar lá no alto também não ajudará em nada as tentativas de fazer alguém ver o lado adocicado do dia a dia.