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Covid longa: estudo 'enxerga' diferenças que eram invisíveis nos pulmões
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O que a imagem de uma molécula de glicose sendo consumida avidamente pelas células pulmonares é capaz de nos contar sobre fadiga, falta de ar, dor para respirar, tosse persistente, enfim, sobre sintomas que muita gente ainda relata, meses depois de ter se recuperado da covid-19?
Para um grupo de cientistas do IDOR (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino), no Rio de Janeiro, o apetite celular por esse açúcar levanta uma suspeita, apesar de exames convencionais de imagem nem sempre acusarem algo de errado com os pulmões: eles no fundo, no fundo, devem continuar inflamados. E essa inflamação invisível pode ter tudo a ver com o mal-estar de quem sofre de covid longa.
Em um estudo que acabam de publicar na revista científica Clinical Nuclear Medicine, os pesquisadores brasileiros mostram que a densidade dos pulmões que um dia tiveram uma pneumonia de moderada a grave por causa da infecção pelo Sars-CoV 2 — repito, mesmo moderada, como a de quem foi internado, mas ficou fora da UTI — tende a ser maior do que a dos pulmões que nunca padeceram com a doença.
E mais: o tecido desses órgãos teria uma atividade metabólica maior do que a encontrada em indivíduos saudáveis e sem qualquer queixa. Isso é fumaça sinalizando incêndio.
O açúcar rastreado
O trabalho foi liderado pela radiologista Rosana Souza Rodrigues. Como toda radiologista, ela trabalha o tempo inteiro com imagens. Em particular, em seu caso, com as da caixa torácica que guarda os pulmões.
Mas a médica gosta de ficar de olho em moléculas. Estas, claro, não aparecem em exames como o do raio X, o ultrassom, a ressonância magnética ou a tomografia convencional, que contam muito mais sobre a morfologia, isto é, sobre a forma ou a aparência dos órgãos.
Com a ajuda da chamada PET-CT — a tomografia computadorizada realizada junto com outra, por emissão de pósitrons —, além de vislumbrar detalhes morfológicos, Rosana consegue imagens moleculares. "Elas dão informações de como as células estão funcionando", explica. "Para isso, usamos uma molécula de glicose, igual àquela que obtemos da dieta. Só que, no nosso estudo, ela está junto de uma outra, que é de flúor-18."
Ligado ao açúcar sem desgarrar, esse flúor vai emitindo partículas com carga positiva, os tais pósitrons que o equipamento "enxerga". Daí, torna-se perfeitamente possível rastrear por onde a glicose está perambulando. "Traçamos o seu caminho pelo organismo e sabemos quando as células estão absorvendo mais ou absorvendo menos esse nutriente", diz a médica.
Um consumo mais elevado indica uma maior atividade metabólica, Ou seja, aquelas células estão precisando de energia extra. É o que ocorre, por exemplo, com as de um câncer, sempre vorazes por combustível para se multiplicarem em modo acelerado. Ou, ainda, com as do cérebro e as do coração, que vivem em atividade intensa, sem contar as da alça intestinal em seu constante movimento. Ou, no caso aqui, com as células de tecidos que estão inflamados — o que os torna fisiologicamente gulosos.
Rosana sabe bem disso desde os tempos de seu doutorado da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, quando investigou a SARA (síndrome da angústia respiratória do adulto), uma inflamação exacerbada do pulmão, como a que se viu tantas vezes na covid-19. "Ela leva a uma insuficiência respiratória e tem uma mortalidade alta", informa.
Depois, a radiologista observou o mesmo aumento no metabolismo do tecido pulmonar em doenças crônicas como a tuberculose, durante o pós-doutorado em outra universidade americana, a de Pittsburgh. De volta ao Brasil para atuar no IDOR desde 2009, é lógico que ela trouxe à tona essa bagagem quando eclodiu a pandemia.
Logo no início
"Antes de você enxergar alterações na morfologia, visualizando a famosa lesão com aparência de vidro fosco nos pulmões de pessoas com covid-19, na certa já haveria células ali consumindo muito mais glicose", presumia a médica nos primórdios do caos.
Por isso, até pensou em aplicar o método da PET-CT em fases precoces da infecção, supondo que ele apontaria aqueles indivíduos com maior risco de complicações. Isso, porém, não deu certo.
"Não havia equipamentos de proteção o suficiente, seria difícil examinar pacientes com uma doença potencialmente tão grave e, ainda por cima, o equipamento de PET-CT sempre foi muito usado para realizar o estadiamento de tumores em pacientes oncológicos, que tinham imunossupressão e poderiam se infectar em qualquer vacilo", relembra.
No entanto, quando ouviu sobre pacientes que permaneciam com sintomas meses depois da covid-19, tirou novamente a ideia da cartola. Naqueles que tiveram pneumonia por causa do Sars-CoV-2, Rosana e seus colegas às vezes notavam a permanência das lesões e até mesmo cicatrizes ou fibroses pelos pulmões. "Logo, nos perguntamos se não haveria uma inflamação ativa e quanto tempo ela duraria", conta.
O que viu o estudo
Os cientistas reuniram gente que tinha sido internada, após pelo menos um mês do início dos sintomas de covid-19 . "Porque, até 30 dias, consideramos que a doença ainda está na fase aguda, sendo normal a pessoa sentir algum mal-estar", justifica.
Os 53 indivíduos que toparam participar — 62% homens, com idade média de 50 anos — responderam um questionário extenso sobre como estavam. Todos relataram pelo menos um sintoma persistente. E — impressionante! — 41,5% mencionaram mais de seis. Alguns deles tinham se infectado sete meses antes.
Na sequência, foi realizada a PET-CT dos pulmões — o exame duplo, analisando tanto a parte morfológica quanto a molecular — e também a dosagem de biomarcadores inflamatórios que ainda podiam estar aumentados na circulação sanguínea.
"Só de olhar a imagem, já dava para constatar que os pulmões tinham uma concentração de fibroses e alterações em sua arquitetura que podiam torná-los mais densos, atrapalhando o seu pleno funcionamento", lembra a radiologista. "Porém, para que fosse preciso, o cálculo da densidade foi feito por inteligência artificial."
Essa medida, depois, foi comparada com a de um grupo de pessoas submetidas ao mesmo exame antes da pandemia — ou seja, sem chance de terem pegado covid-19 e ela ter passado batido. Assim, confirmou-se que os pulmões de quem enfrentou o Sars-CoV-2 eram, de fato, mais densos.
Já em relação ao consumo de glicose, a PET-CT mostrou que ele era maior. E o curioso: "Isso acontecia não só nas áreas do pulmão que, na análise morfológica, tinham alguma alteração em decorrência da doença, mas naquelas que, visualmente, pareciam completamente normais na tomografia", revela Rosana.
Isso significa que as aparências enganam: na covid longa, a inflamação é difusa por todo o pulmão, acontecendo até onde ele parece estar bem, obrigada.
Por fim, um mistério. Ao contrário do que os pesquisadores imaginavam, não foi encontrada uma correlação com os biomarcadores no sangue. Isso quer dizer o seguinte: nem sempre aquele consumo de glicose elevado acusando uma inflamação era acompanhado por uma alta proporcional nessas moléculas sanguíneas e vice-versa.
E agora, como fica?
É a pergunta que a gente se faz quando sai um estudo assim. Primeiro, um recado da doutora Rosana: "O trabalho está longe de ser uma recomendação para que pessoas com sintomas associados à covid longa se submetam a uma PET-CT". Não teria mesmo o menor cabimento.
O exame nem é dos mais acessíveis — ao contrário — e, principalmente, implica expor o organismo à radiação, algo que deve ser feito por um bom motivo, como acompanhar a evolução de um tratamento contra o câncer.
No entanto, resultados assim reforçam a hipótese de estudos similares envolvendo PET-CT: para pacientes com pneumonia provocada pelo Sars-CoV-2, receitar precocemente anti-inflamatórios, como corticoides, reduziria a incidência da covid longa. Ou, talvez, esses medicamentos até ajudariam a lhe colocar um fim.
O time do IDOR quer repetir a experiência quando os pacientes do estudo completarem dois anos da infecção. E, desse modo, checar se a covid é longa pra valer ou se, com o tempo, o metabolismo do tecido pulmonar diminui, sugerindo que a inflamação foi embora.
De qualquer maneira, para os que são atormentados pela covid longa existe um certo alívio desde já: o trabalho sugere que sua condição existe, é real, embora muitas vezes pareça invisível.
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