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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Por que os casos de autismo parecem ser cada vez mais comuns?

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

11/10/2022 04h00

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Se, há alguns anos, encontrar ou até mesmo saber de alguém com autismo era algo muito ocasional, diria quase raro, hoje praticamente todo mundo conhece uma criança com TEA, ou transtorno do espectro autista, o imenso guarda-chuva que abriga meninos e meninas — na realidade, mais meninos do que meninas — com graus diferentes de dificuldade de comunicação e interação social, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos.

Portanto, a pergunta sobre o aumento explosivo de casos soava inevitável no último sábado, 8, quando aconteceu um simpósio inteiro dedicado a essa condição neurológica dentro do 6.º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil, em São Paulo.

Os números trazidos pelo psicólogo André Varella, pesquisador do TEA no INCT-ECCE (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino), em São Carlos, no interior paulista, mostram que não se trata de mera impressão.

Os dados que ele anunciou à plateia são americanos e acabam de ser divulgados pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention). Segundo eles, nos anos 1970 existia um único diagnóstico de autismo em cada 10 mil crianças. Mas, uns 25 anos depois, em 1995, já havia um caso confirmado em cada 1 mil crianças.

Em 1999, os registros apontavam um autista entre 500 garotos e garotas. E desse jeito foi, isto é, o TEA crescendo sempre. Até que, em 2018, se notou a proporção de um paciente com esse distúrbio de neurodesenvolvimento para cada 59 crianças, um para cada 54 em 2020 e um para cada 44 agora, em 2022.

Preciso contar: no próprio evento, houve até quem questionasse se o problema seria, de fato, assim tão frequente como afirmam os americanos, preferindo a estimativa clássica de 1% ou uma em cada 100 crianças. Cá entre nós, continua sendo um número nas alturas. Significa que, no Brasil, temos por baixo 2 milhões de indivíduos autistas.

Daí que, sim, todos nós conhecemos alguém com TEA. "E muitos têm a fantasia de que existe algo misterioso, causando uma espécie de epidemia do problema", percebe Varella. Aliás, já se falou muita bobagem nesse sentido, começando pela boataria de que a vacinação infantil estaria por trás. Esqueça.

Outros se valem do avesso áspero da sabedoria para subir no banquinho do "sou-do-contra" e filosofar que o transtorno é modismo, passando o trator da arrogância por cima de famílias que buscam um diagnóstico preciso — que nunca é fácil, mas é capaz de fazer a diferença na condução de cada caso, já que um pode ser completamente diferente de outro —, acesso. a tratamento, inclusão nas escolas e em todos os cantos, mais um quesito básico que se chama empatia.

Sem contar que tanta incompreensão — de todos nós — causa dor nos próprios autistas. Que, atenção, percebem o mundo ao seu jeito — e ele às vezes machuca com a ignorância do que se passa e a vontade de fazer com que os indivíduos caibam na mesma forma, na mesmíssima caixinha.

Para entender os números

"Quando se comparam países, a gente percebe uma variação muito grande na prevalência de TEA entre eles", admitiu André Varella, projetando um mapa-múndi construído com base em 71 estudos. Em parte, diz o psicólogo, as diferenças ocorrem porque esses trabalhos usaram metodologias diferentes.

Entenda: com o tempo, a definição de TEA foi se tornando mais e mais abrangente. Ela mudou pelo menos quatro vezes nas últimas décadas. "Por isso, hoje, são diagnosticadas com quadros leves do espectro pessoas que, há 20 anos, a gente não diria que eram autistas", conta André Varella. Isso ajuda a esclarecer o aumento de casos.

Esse crescimento, aliás, é mais expressivo em regiões do globo que, antes, estudavam menos o problema, daí que ele permanecia invisível e agora vem à tona. ."Outra explicação importante é que as pessoas estão melhorando na detecção dos sinais de autismo, favorecendo o flagrante", observa o pesquisador.

Para citar apenas alguns desses sinais, pode ser o bebê que tem pouco ou nenhum contato visual, que não segue com o olhar quando lhe apontam um objeto, que nunca imita expressões faciais, que jamais estende os bracinhos pedindo colo, mal fala ou balbucia, não gosta de ser tocado, tem dificuldade para lidar com mínimas mudanças de rotina ou de ambiente... A lista é longa.

"Em geral, os pais sentem quando há algo diferente e sabem que devem procurar ajuda, o que é um fenômeno mais recente", diz Varella. O diagnóstico, porém, só é fechado depois dos 2 anos de idade. Mas é bom que ele aconteça o quanto antes para que essa criança seja acompanhada por uma equipe multidisciplinar.

Depressão, ansiedade...

E, ainda, TOC (transtorno obsessivo compulsivo), TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e distúrbios do sono, por exemplo — sete em cada dez pessoas com autismo têm uma comorbidade como essas. Metade tem mais de uma, conforme aprendi com a psiquiatra Gabriela Viegas Stump durante o evento.

"Provavelmente, esses problemas têm uma origem genética semelhante", diz ela, dando uma possível razão de por que andam de mãos dadas. De acordo com os estudos, autistas e pessoas com essas condições compartilham de 50% a 72% de alterações genéticas. Os sintomas se sobrepõem, emaranhando tudo.

Coordenadora dos residentes no Projeto TEA do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), ela reforça que não há medicamento para o autismo. Mas, para esses outros problemas, sim. E, uma vez diagnosticados, os remédios devem ser usados.

"Em casos mais leves de TEA, eu posso encontrar quadros de ansiedade que atrapalham muito mais a convivência social do que o autismo em si", exemplifica a médica. "E, quando esses pacientes são tratados da ansiedade, a qualidade de vida melhora muito."

A culpa é dos astrócitos?

Falar em culpa é muito forte. O TEA é complexo, ninguém entende direito suas causas. Por enquanto, o que mais existe é suspeita, como a de que certas infecções na gestante poderiam ser o estopim do problema no feto.

Sempre foi difícil estudar o que exatamente acontece no sistema nervoso central do autista — afinal, como conseguir suas células cerebrais para examiná-las de perto?

Em 2008, pesquisadores da Universidade de São Paulo idealizaram uma solução, criando o projeto "A Fada dos Dentes". Eles utilizam células-troncos encontradas na polpa dos dentes de leite de crianças autistas. "Elas são o que chamamos de pluripotentes, isto é, capazes de se transformar em qualquer célula do corpo humano", explica a bióloga Patrícia Beltrão Braga, criadora da iniciativa.

O grupo dela foi o primeiro a demonstrar que o cérebro do autista é mais inflamado, por assim dizer. Aliás, há uma forte presença de uma citocina inflamatória, a interleucina 6 ou simplesmente IL-6.

No congresso do Sabará-Pensi, Patrícia contou que, já faz algum tempo, o grupo deixou de focar exclusivamente nos famosos neurônios e passou a investigar os astrócitos dessa criançada, células que ficam na retarguarda, mas que exercem papéis fundamentais. Um deles é fazer uma espécie de faxina cerebral.

Pois bem: nos autistas, essas células mostraram que não removem direito uma substância chamada glutamato, cujo acúmulo acaba sendo tóxico para os neurônios.

Nas lâminas, enquanto os neurônios de crianças que não apresentavam TEA exibiam um monte de prolongamentos, os axônios, quase como se fossem raios de sol, os neurônios dos autistas tinham, por exemplo, só uma duplinha para criar conexões — a imagem dá a impressão de existir fiozinho para um lado e um fiozinho para o outro, se eu fosse descrever.

"No entanto, quando colocamos esse neurônio do autista sobre uma lâmina cheia de astrócitos criados a partir da polpa do dente de leite de meninos sem essa condição, a célula nervosa recuperava a forma esperada", revelou a pesquisadora. Ou seja, ela se esticou em diversos axônios, capazes de formar sinapses ou conexões.

Estudar o que fazem os astrócitos nessa história é um pequeno passo para compreender o TEA. Mas um passo gigantesco para nos distanciar de ideias equivocadas de que o autismo seria uma espécie de nova mania, um diagnóstico da moda ou uma questão de comportamento.