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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Um brinde à polêmica: vinho não faz bem para o coração de todo mundo

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

25/10/2022 04h00

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O vinho servido nas melhores mesas já provocou tantas mudanças de opinião em relação a vantagens e desvantagens de consumi-lo quanto aquele ovo estalado na chapa de um botequim.

Mas o fato é que a gente não perdoa o ovo, nem a ciência, que um dia diz que ele não é uma boa para a saúde cardiovascular e, no outro, libera a gema no prato para, depois, pedir novamente moderação, em uma gangorra que já leva décadas nos deixando tontos.

Já o vinho tinto, também nessa gangorra, parece estar mais do que perdoado entre nós. Muitos se agarram em notícias de que ele ajudaria a diminuir o colesterol, que seria o suposto segredo da longevidade de gregos e italianos e por aí afora. Então, fecham os olhos para degustá-lo, sem querer olhar para trabalhos que, por exemplo, o acusam de aumentar em vez de diminuir a pressão. Para que transformar esse prazer em vinagre, não é mesmo?

Entre goles da bebida, a gente sorve junto a imagem de que uma taça de vinho por dia dá ainda maiores prazeres ao coração. Uma ideia que nem é nova, longe disso. No fundo, sua origem está em 1819, quando um médico irlandês observou que os franceses morriam menos de problemas cardíacos do que outros povos da Europa.

Até que, em 1991, um estudo publicado no British Medical Journal retomou a história. Feito por pesquisadores da Universidade de Bordeaux, na França, com mais de 35 mil homens daquele país, o trabalho mostrou que, mesmo se empanturrando de queijos, manteiga, cremes e patês — ou seja, ingerindo uma quantidade de gordura de fazer inveja aos comedidos —, eles tinham bem menos problemas nas coronárias.

Os autores concluíram que o fenômeno, ao qual deram o apelido de "paradoxo francês", tinha a ver com o hábito de as pessoas tomarem vinho diariamente. Mas será que a bebida teria mesmo todo esse poder de blindar o peito diante colheradas extras de gordura saturada?

Não tardou para ligarem a mania francesa com a dos povos mediterrâneos, que também viviam bem e bebiam vinho tinto todo dia. A partir daí, explodiram estudos sobre alguns dos mais de 500 componentes antioxidantes nas cascas das uvas e a fama, ou melhor, a recomendação correu solta.

Mas a verdade é feito uma rolha que se esfarela, ameaçando roubar o sabor bom das coisas. Hoje se sabe que aquele e outros trabalhos que vieram depois sugerindo que a tal taça diária seria uma ótima pedida têm várias falhas. Olhando direito, as evidências científicas de que uma dose cotidiana de um tinto nos protegeria de doenças cardiovasculares são fracas.

Não há provas de que esse costume delicioso faça bem ao peito — aliás, nem sequer ao organismo como um todo. Ao contrário, surgem pesquisas apontando que até mesmo o consumo moderado de vinho poderia trazer prejuízos. Por consumo moderado, entenda duas taças de vinho para homens e uma para mulheres todo santo dia.

Recentemente, cientistas britânicos demonstraram que ele seria capaz, inclusive, de causar depósitos de ferro em algumas regiões do cérebro, favorecendo problemas de cognição e demências com o tempo. E, agora, como fica o nosso brinde?

Um ponto favorável à bebida fermentada

"Quando alguns trabalhos — um deles bem famoso nos meios científicos, feito com milhares de enfermeiras americanas — buscaram entender o impacto na saúde do que as pessoas consumiam na alimentação do dia a dia, surgiu a impressão de que tomar moderadamente álcool seria melhor do que não tomar álcool algum", relembra o cardiologista Luiz Antonio Machado Cesar, professor da Faculdade de Medicina da USP e assessor científico da SOCESP (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo).

Isso, atenção, já caiu por terra. Para começo de conversa porque, então, ninguém entrou no mérito se os participantes que, naquele momento, eram abstêmios não tinham sido usuários pesados de álcool antes. Se fosse assim, o fato de apresentarem uma saúde pior do que a de quem bebia só um pouco rotineiramente teria a ver com danos acumulados no passado — e não com supostas vantagens de pequenas doses diárias.

"Mas o que sempre ficou claro em estudos sobre bebidas alcoólicas é que os eventuais benefícios à saúde estavam muito mais associados àquelas que eram fermentadas, como o vinho e a cerveja", explica o médico, estudioso do assunto.

Já a bebida destilada — feito o uísque, a vodka e a aguardente — estava bem mais relacionada a doenças no fígado e a tumores, como os de boca e os de estômago, provavelmente pelo teor de álcool, que é incomparavelmente maior.

"Mas não só isso. As bebidas fermentadas conservam os antioxidantes das cascas de uvas, no caso específico do vinho tinto, ou dos grãos com que são feitas", diz o professor. "E, para completar, os fungos que transformam seus açúcares em álcool morrem e, óbvio, não desaparecem. Suas células ficam ali, em suspensão. E parece que também têm efeitos positivos para a saúde." Sem contar, acrescenta ela, substâncias benéficas que passam dos barris onde o vinho é produzido.

Mas álcool ainda é álcool

Mesmo assim, uma baita revisão sobre vinho tinto e saúde cardiovascular que saiu na revista Circulation em 2017 não viu grandes diferenças entre tomar essa ou qualquer outra bebida. O vinho não pareceu diminuir o colesterol ou as terríveis placas nas artérias, como se presumia.

A questão é que, por mais que o produto feito com as cascas uvas conserve componentes delas que há anos vêm demonstrando proezas em ratinhos de laboratório, essas moléculas terminam nadando em álcool. E álcool é álcool.

"Um consumo maior do que 20 gramas dele por dia é capaz de elevar a pressão, aumentando em algumas pessoas o risco até mesmo de um AVC, o acidente vascular cerebral", conta o professor Cesar.

Por isso, a recomendação das sociedades de cardiologia mundo afora é clara: para não agravar ainda mais a sua situação, quem já é hipertenso não poderia tomar mais do que um dedinho de vinho diariamente.

Veja, um dedinho mesmo, bem menos do que uma taça. "É tão pouco que é melhor dizer para o indivíduo não beber, porque dificilmente ele conseguirá ficar só naquilo", acredita o professor.

Vale eu refrescar a sua memória de que, à melhor maneira do ovo, existiram trabalhos no passado afirmando o inverso disso, isto é, dizendo que o vinho tinto melhoraria a pressão arterial. Mas não é nisso que os cardiologistas continuam acreditando hoje.

E quanto ao restante das pessoas?

Na ausência de problemas como dependência etílica e a própria hipertensão, será que as velhas promessas de alguns goles de tinto seriam mantidas, já que ele tem tantos componentes benéficos vindos das cascas que lhe conferem o tom?

"Depende", responde o professor Cesar. "Diria que em uma refeição, em uma quantidade pequena, o vinho tinto é capaz de proteger a saúde cardiovascular, sim. Especialmente os mais secos e, melhor ainda, aqueles que passaram mais tempo em barris".

Mas ele frisa pra valer o detalhe de ser junto com a refeição — ou seja, aquele vinho sozinho ou mal e mal acompanhado na happy-hour não contaria.

Um dos motivos é o álcool ser absorvido mais vagarosamente quando ingerido junto com alimentos. Mas há outro, bem importante por sinal.

"De um lado, os povos que tomam vinho tinto no dia a dia e que apresentam bons indicadores de saúde, como os mediterrâneos, bebem enquanto almoçam ou jantam", diz o cardiologista. "De outro, todas as tentativas de usar componentes do vinho tinto, como o famoso resveratrol, na forma de suplemento alimentar não fizeram qualquer diferença para o coração, nem para a longevidade e isso nos dá uma pista."

Onde ele quer chegar: ao que tudo indica, há uma sinergia entre as moléculas presentes no vinho que, quando isoladas, deixam de ter o mesmo efeito. E, dentro de uma dieta equilibrada com carnes magras, frutas, legumes, hortaliças, azeite de oliva e oleaginosas, como a Mediterrânea, é possível que a ação dessas moléculas fique potencializada por conta de outras interações.

Fato: nenhum estudo viu qualquer benefício em consumir vinho tinto com salgadinho de festa, hambúrguer, linguiça do churrasco, nem nada disso. O caso francês só não é um completo paradoxo porque eles consomem muita salada, não exageram nas porções, usam menos açúcar e caminham de montão. Só assim o vinho tinto harmoniza com saúde.