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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Como a fome, tão presente, tortura o corpo e afeta o cérebro para sempre

Terimakasi / Pixabay
Imagem: Terimakasi / Pixabay

Colunista de VivaBem

27/10/2022 04h00Atualizada em 27/10/2022 14h48

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Quem tem olhos para ver o nosso país não precisa enxergar longe para avistar alguns dos 33 milhões de brasileiros que estão com um cérebro com a circuitaria neuronal completamente alterada. Para ficar só nele.

Por causa de um grupo específico de células ativadas, esse cérebro já não tem tanta capacidade de controle emocional e toma decisões por impulso, o que pode resultar em toda espécie de desastre.

Apresenta, ainda, dificuldade para controlar movimentos e não consegue ter um sono profundo, que consolidaria os aprendizados do dia e restauraria o corpo da cabeça aos pés. Acorda zonzo de fraqueza e mais e mais moído.

A memória se encontra prejudicada de maneira perturbadora. Mas, acima de tudo, seus neurônios perderam fisiologicamente a capacidade de sentir alegrias. Não há poesia nisso, é pura neurofisiologia. A dor — física, inclusive — seria um texto à parte.

Conforme a idade ou, independentemente dela, conforme o tempo que esse mal dure, seus estragos na cabeça se tornam irreversíveis. O indivíduo que um dia conviveu com essa condição tão escancarada em nossa gente sempre terá enorme tendência a transtornos mentais. A depressão profunda e a ansiedade costumam se tornar ameaças constantes.

Estes 33 milhões de pessoas que estão na cara do Brasil têm fome. Muita fome.

São 14 milhões a mais do que havia em 2020, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, encomendado pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).

Mas desconfio que o mesmo problema cerebral possa ocorrer com outros 125,2 milhões de brasileiros — estes não sentem fome extrema, mas estão longe de ter acesso pleno a alimentos, tanto em matéria de quantidade, quanto em qualidade. Muitos fazem uma única refeição diária e ela pode não bastar para colocar fim no penar do sistema nervoso central.

Considero esses 125,2 milhões pelo que aprendi com a neurocientista Estefania Azevedo, que as reações do cérebro variam muito entre as pessoas: "Algumas se ressentem quando há pouca comida de forma mais intensa do que outras", ouvi.

Formada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) —"sou fruto da universidade pública no Brasil"—, ela foi para os Estados Unidos para trabalhar por sete anos na Rockfeller University com o cientista Jeffrey Friedman, o descobridor da leptina, hormônio que dá a sensação de saciedade.

Hoje, Esfania Azevedo é professora assistente na MUSC (Medical University of South Carolina), onde tem o seu laboratório. Lá, investiga a neurobiologia da anorexia nervosa. Esse conhecimento, segundo ela, pode ser extrapolado à situação de quem não come por outra causa: a pobreza.

Daí a razão de eu procurá-la para entender o que acontece com os neurônios cerebrais quando o organismo está privado de alimentação. Nesse contexto, encarregado de garantir as condições para a nossa sobrevivência e sendo ele próprio um grande consumidor de energia, o cérebro é o primeiro a sofrer.

Se estamos em jejum

Claro que aquelas horas em que eu e você ficamos sem comer porque estamos dormindo ou aguardando entre uma refeição e outra não podem ser comparadas ao monstro da fome que abate a nossa população. Mas, do ponto de vista neurobiológico, elas são o início de tudo.

"No sangue, a insulina baixa e aumenta outro hormônio produzido pelo pâncreas, que é o glucagon", conta a professora. A dupla tem efeitos opostos. A insulina sinalizaria para o cérebro que o organismo está bem abastecido. Em sentido contrário, o glucagon surge quando há risco iminente de faltar energia. Então, outro hormônio, a grelina produzida no intestino, ativa determinados neurônios na região cerebral do hipotálamo — os AGRP ( sigla em inglês para agouti-related peptide) — que disparam a fome.

"O próprio hipotálamo tem populações antagônicas de neurônios", conta a neurocientista. "Se a dos AGRP está ativada, você sente o ímpeto de procurar comida e um outro grupo de neurônios, por sua vez, permanece totalmente inibido. Ele só seria ativado na saciedade e tem a ver com comportamentos mais próximos da calma."

O interessante é que esses neurônios no hipotálamo estão conectados de maneira bem complexa a diversas regiões cerebrais. Os AGRP, por exemplo, conversam com populações neuronais de outros cantos, desencadeando irritação, ansiedade, falta de concentração, até sintomas como náuseas.

"Na perspectiva da evolução, faz sentido: a sensação ruim é para motivar o indivíduo a ingerir algo e interromper aquilo", diz Estefania. "Em um pensamento minimalista, tudo no cérebro funciona na base da recompensa e da punição. A fome é punição."

Toda a memória, então, vai sendo dominada por lembranças de onde seria possível achar comida. E os sentidos ficam mais ativados."A motivação também aumenta — para terminar uma tarefa, por exemplo. Você precisa correr para se livrar da sensação desagradável", conta a pesquisadora.

O corpo permanece em alerta porque, afinal, está usando suas reservas energéticas. Logo, para o cérebro, há uma questão de vida ou morte — ter descanso ou hibernar são luxos de quem já comeu tudo o que precisava.

"A questão é que, se esse jejum se prolonga além da conta, outros circuitos neuronais começam a se acender, principalmente os do estresse, diminuindo neurotransmissores como a serotonina e a dopamina, que proporcionariam quaisquer sensações de prazer, inclusive ao sentir o sabor do alimento", explica.

A partir desse ponto, ficar sem comida deixa de ser apenas uma sensação ruim: "Passa a ser algo fisiologicamente negativo, fazendo mal ao cérebro e ao resto do corpo, interferindo na imunidade e muito mais".

Quando a fome não passa

A professora Estefania Azevedo garante: "Fome crônica aumenta terrivelmente os níveis do hormônio cortisol do estresse e isso muda de vez os circuitos do cérebro, interferindo mais na memória e no bom repouso. A pessoa pode se encontrar adormecida de fraqueza, mas sem um sono fisiológico. E, com o tempo, essas mudanças se tornam irreversíveis".

A gente imagina que, daí, o pobre coitado fica esbravejando atrás de alimento. "Mas o que acontece, curiosamente, é o contrário: em experiências com camundongos, nota-se que por causa do estresse crônico amplificado pelo período sem comida, eles perdem a vontade de comer."

Alguns cientistas especulam que isso ocorra porque os animais ficam deprimidos. "Estudos envolvendo indivíduos em situação de miséria e até mesmo pacientes anoréxicas mostram que elas ficam deprimidas também. Começa a faltar ânimo para procurar alimento e, na prática, a pessoa vai se privando cada vez mais de se alimentar", ensina.

Por isso, talvez, os casos drásticos realmente não são vistos nas portas de padarias — contrariando certa declaração que vimos nos noticiários. Quem tem fome chega a um ponto que não encontra motivação para ir atrás do pão, aquele que seria o nosso de cada dia.

Nessa fase, a adaptação dos neurônios já não é benéfica para o corpo, que precisa se contentar com uma oferta energética praticamente nula. É como se o sistema nervoso central jogasse a toalha no chão. Ou melhor, hedonista, é como se ele quisesse desligar a dor porque não gosta de sofrer. "O cérebro sempre quer diminuir a punição", observa a cientista. Mas a punição — a fome — continua lá.

Como o organismo consegue sobreviver por um tempo sem se alimentar, os neurônios anestesiados para a sensação de fome prolongam todo o resto da tortura, tornando-se debilitado e mentalmente transtornado.

Embora dores crônicas e inflamatórias se calem na circuitaria neuronal remodelada pela fome extrema — "como se o sofrimento dela falasse mais alto", compara a neurocientista — , a fisgada no estômago e dores agudas como a de um ferimento podem se tornar mais fortes.

Dores para sempre

A mudança nos circuitos que envolvem o neurotransmissor dopamina — relacionado a sensações de recompensa — na maioria das vezes não tem volta. Especialmente quando a fome atinge crianças, que têm o sistema nervoso ainda em formação. Nelas, as conexões do córtex, região nobre ligada à cognição, saem devastadas dessa experiência miserável.

"Pelos estudos com casos de anorexia —deduzindo que algo parecido aconteça na fome— , mesmo que seja retomada uma alimentação normal, os neurônios que controlam o comportamento afetivo dificilmente voltam ao que eram", observa.

Ou seja, quem conhece a fome extrema — por pobreza ou por causa desse transtorno alimentar — , ainda que passe a esvaziar pratos cheios de comida, costuma apresentar quadros como ansiedade, fobia social, depressão, síndrome de pânico, problemas sérios de autoestima, além de transtorno obsessivo-compulsivo.

"A fome tem um custo muito maior para um governo do que investir em programas sociais para acabar com ela", assegura a professora, baseando-se em dados de estudos que consideram os gastos com afastamentos do trabalho, problemas comportamentais, depressão, demências feito o Alzheimer e até autismo — sim, a fome também está associada ao aumento desses casos.

"Preocupar-se com soluções para a fome é evitar que uma população esteja sempre doente", opina a neurocientista."Preciso também dizer que fome e ciência têm tudo a ver com política. Afinal, o que estudamos e desenvolvemos é para o bem público. Se você tem um governo que não combate a fome, nem financia a ciência, não há futuro para essa sociedade." Não dá para negar.