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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Já fez uma elastografia? Hoje, esse exame simples do fígado é fundamental

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

10/11/2022 04h00

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Não faz tanto tempo assim e inexistia um meio de os médicos enxergarem até que ponto um fígado estaria sofrendo calado. E, olha, o que mais tem por aí é fígado sofredor! Trata-se, sem exagero, de um problema de saúde pública que, mais dia, menos dia, explodirá — se é que já não está explodindo.

Hoje, de cada três pessoas que você conhece, pelo menos uma delas deve ter um fígado enfrentando uma intrusão de gordura, a tal da esteatose, o que já é motivo para lá adiante ele, talvez, cair no berro.

O grande desafio é que esse órgão vital só reclama com sintomas de adoecimento quando já está todo comprometido. Quando há cirrose, por exemplo, e é tarde demais para se fazer muita coisa.

Em tese, a biópsia seria um caminho para mostrar o seu estado antes de a situação ficar ruim de vez. Mas na prática, até pelos riscos inerentes ao procedimento, como sangramentos, quem vai sair fazendo biópsia de fígado em todo mundo?

Já a ultrassonografia comum, apesar da vantagem de não ser invasiva, deixa escapar muitos casos que são bem mais complicados do que os seus cinquenta tons de cinza revelam na tela do monitor.

Daí a importância de um exame simples, cujo equipamento lembra o do próprio ultrassom — na verdade, usa ondas sonoras também — e que surgiu de uns vinte anos para cá. No SUS, é oferecido a quem tem hepatite C. Mas, entre nós, ainda é pouquíssimo solicitado em outras circunstâncias, apesar de fazer parte há quatro anos do rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e, portanto, ser coberto pelos planos de saúde privados, o que deveria ter facilitado sua popularização — só que não. Ou será que alguém já lhe pediu para fazer uma elastografia?

O objetivo é ver se o fígado não está ficando endurecido, o que não seria um bom sinal. E, dependendo do grau dessa rigidez, o exame aponta se ainda dá para remediar.

Sempre a mesma história

Nosso fígado, se não vai bem, segue um roteiro bem definido, que é sempre idêntico, não importando quem é o seu agressor.

Pode ser um vírus como o da hepatite C ou o da hepatite B, quando se instala e não vai embora, tornando a doença crônica. E pode ser a gordura infiltrada entre suas células.

"Independentemente da causa, a primeira coisa que acontece é uma inflamação", me explica o hepatologista João Marcello Araújo Neto, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Como essa inflamação agride, não é surpreendente que muitas vezes surjam cicatrizes aqui e ali — e, sim, elas são mais rígidas do que o tecido normal do órgão.

"Na sequência, a quantidade cada vez maior dessas fibroses vai deformando a arquitetura perfeita das células hepáticas", diz o médico, que é também presidente do Grupo de Fígado do Rio de Janeiro.

Tente imaginar: com formato de poliedro, as células do fígado se agrupam em estruturas que lembram favos de mel. E tudo ali tem uma arrumação precisa. "Bem no meio passa uma veia. Na pontinha, uma artéria e um canal biliar", vai me descrevendo o professor.

Quando as fibras de colágeno, endurecidas, passam a entremear essa estrutura, tudo nela sai do lugar. "Então, nada mais funciona direito. É a cirrose", ensina.

Como é o exame

Há duas técnicas de elastografia, como o professor mostrou aos seus colegas durante o Diacordis, evento médico que aconteceu nos últimos dias de outubro, reunindo endocrinologistas e cardiologistas de todo o país em discussões sobre os inúmeros elos entre diabetes, doença cardiovascular e obesidade — e é sabido que a gordura no fígado também está conectada a essas condições.

No espaço transformado em sala de exame, a quem botava o nome na lista Araújo Neto primeiro demonstrava a chamada elastografia transitória ou FibroScan — "é nome de marca, mas se tornou sinônimo da técnica da mesma forma como a gente chama fotocópia de xérox", explica.

O procedimento dura poucos minutos e é indolor. Tudo o que a pessoa sente é um leve peteleco no instante em que o ultrassom é lançado no fígado e se propaga pelo órgão, "como se ele fosse um lago no qual você joga uma pedrinha e isso forma ondas", compara o hepatologista. Conforme acontece essa propagação, dá para se ter ideia de quão rígido está o fígado e quanta fibrose ele já acumula.

Na outra técnica, a elastografia ARFI (do inglês,accoustic radiation force impulse), o transdutor — aquela parte do aparelho de ultrassom que desliza sobre a barriga — emite pulsos de ondas que batem no fígado e voltam, enquanto um software mede a velocidade desse percurso.

Se o órgão está fofo, por assim dizer, há um amortecimento e essa velocidade é menor. E, quanto mais rígido estiver, mais rápido será o bate-e-volta.

A partir do resultado

De um jeito ou de outro, o que o médico obtém é um estadiamento, apontando em que parte daquele roteiro o fígado está — se ele tem apenas gordura, se já está formando fibroses, se elas estão se concentrando perigosamente ou se já é caso de cirrose pra valer.

"Esse conhecimento é um divisor de águas", opina Araújo Neto. "Se o paciente realmente só tem gordura no fígado, o que a elastrografia é capaz de esclarecer, vou recomendar mudanças no estilo de vida, com alimentação equilibrada e exercício para perda de peso. Mas, se ele já apresenta fibrose, posso prescrever remédios específicos."

Não há evidência científica de que o arsenal farmacêutico atual leve à regressão das fibroses já existentes, isso é um fato. Mas as medicações disponíveis ajudam a diminuir tanto a gordura quanto a inflamação no órgão, o que pelo menos serve para impedir a progressão do problema, aliviando o risco de uma cirrose dar as caras.

Nem todos com gordura no fígado terão maiores problemas

Bom esclarecer que uma pessoa com esteatose não terá necessariamente algum perrengue mais grave. "Oito em cada dez indivíduos com gordura no fígado ficarão só nisso", garante Araújo Neto.

O restante, ou 20% dessa gente, é que irá desenvolver algum grau de fibrose. "E, por sua vez, se você olha apenas para quem já tem fibrose, 5% apenas acabarão com cirrose", calcula o médico.

Parece pouco. Mas pense que 30% da população do país apresentam gordura no fígado. Ou aproximadamente 64 milhões de pessoas.

Fazendo contas, isso significa que quase 13 milhões de brasileiros devem ter fibrose hepática. E uma multidão de 650 mil irá desenvolver cirrose por causa dela, se nada for feito antes, graças ao alerta de uma elastografia. A questão é que existem menos de mil hepatologistas no Brasil para dar conta do recado.

O pedido do exame em outras especialidades

"Há um entendimento de que, diante do cenário atual, a prescrição da elastografia e até o tratamento da esteatose não devem se restringir ao consultório do hepatologista", afirma Araújo Neto que, por essa razão, está envolvido em dar aulas sobre o tema para médicos de outras especialidades.

"Por causa do crescimento avassalador da obesidade infantil, já encontrei fibroses no fígado de adolescentes de 15, 16 anos, que conviviam com o excesso de peso desde os primeiros anos de vida", ele conta, lembrando que até mesmo os pediatras precisam cogitar o exame em alguns casos.

Tudo indica, porém, que isso levará um tempo razoável para acontecer. No próprio Diacordis onde o hepatologista deu aula, foi apresentada a pesquisa de percepção Receita de Médico, coordenada pelo endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, que é também o idealizador do evento.

Metade dos 654 especialistas que responderam um questionário extenso sobre como cuidam de seus pacientes com diabetes, obesidade e doença cardiovascular — a maioria deles, endócrinos e cardiologistas — afirma que nunca ou quase nunca pede a elastografia, exame que deveria ser repetido em intervalos de três a cinco anos.

João Marcello Araújo Neto acha até compreensível esse resultado. "É uma ferramenta de rastreamento relativamente nova. Além disso, os médicos de outras áreas estavam acostumados a só enxergar a cirrose, porque não havia a valorização das etapas que a antecedem. Daqui a dez anos, por exemplo, todo ginecologista vai pedir uma elastografia para as mulheres", ele aposta.

Mas, pense, ninguém precisa esperar até lá para conversar sobre o assunto em uma consulta, correndo o de o fígado sofrer em silêncio por mais uma década.