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Linfoma: médicos alteram células de defesa do paciente para atacar o câncer
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Há pouco mais de duas semanas, no dia 9 de janeiro, um homem de 74 anos recebeu de volta as células T, integrantes do sistema de defesa, que tinham sido coletadas do seu sangue quase dois meses antes. Ao retornarem para o seu organismo, porém, elas já não eram mais as mesmas.
Viajaram até um laboratório americano e, ali, foram geneticamente modificadas. Transformaram-se em supercélulas, podemos entender assim. Ou, usando o termo correto, viraram células CAR-T, sigla do inglês para células T quiméricas do receptor de antígeno.
Em palavras mais fáceis, foram preparadas para reconhecer e atacar o câncer que aquele senhor tinha. Era o tipo mais comum de linfoma. E ele — atenção — foi o primeiro paciente que recebeu células CART-T no Brasil, depois de esse tratamento ter sido aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A cobertura, bom dizer, é obrigatória pelas operadoras de saúde regulamentadas pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
"Até então, para qualquer forma de câncer, no nosso país as CART-T só tinham sido usadas em pesquisa", conta, empolgado, o médico Jacques Kaufman, coordenador de Hematologia do CHN (Complexo Hospitalar de Niterói), no Rio de Janeiro, onde tudo aconteceu.
Para quem é
Por enquanto, a aprovação das células CART-T como um medicamento personalizado — este, desenvolvido pela farmacêutica Novartis — é apenas para jovens de até 25 anos com uma forma específica de leucemia, a linfoblástica, e pessoas com um linfoma difuso de grandes células B, como o desse primeiro paciente submetido à terapia no hospital fluminense.
"O nome dessa doença tem a ver com a sua característica morfológica", explica o oncologista Gustavo Fernandes. Quer dizer, tem a ver com o que um patologista enxerga ao diagnosticar esse câncer do sangue: linfócitos B, os nobres produtores de anticorpos, anômalos e grandalhões, espalhados difusamente pelo gânglio doente. Este não é um achado raro.
Quando a gente fala em linfoma, câncer que sempre tem um linfócito envolvido na confusão, está se referindo a cerca de 60 doenças diferentes. Mas oito em cada dez casos são de um grupo que os médicos chamam de não-Hodgkin. "E, por sua vez, o tal linfoma difuso de grandes células é o mais comum dos não-Hodgkin", diz o doutor Fernandes, para a gente ter a dimensão do problema.
Diretor de Oncologia da Dasa, rede de saúde integrada à qual o CHN pertence, ele lembra que essa forma de linfoma foi a que acometeu, por exemplo, a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2009. Como ela, a maioria dos pacientes fica bem.
"É um câncer agressivo, mas com uma taxa de cura alta quando a pessoa passa por quimioterapia sozinha ou por quimioterapia e imunoterapia", diz ele. Uma vez tratados, de 85% a 90% dos indivíduos se livram da doença.
A questão é que ainda sobram, em cada 100 casos, dez ou quinze que não respondem aos tratamentos que existiam até o momento. É para essa gente que as células CAR-T representam uma baita promessa.
"Elas foram aprovadas para uso em pessoas que já se submeteram a, no mínimo, duas linhas de tratamento prévias e nenhuma delas adiantou", explica o doutor Jacques Kaufman. Portanto, hoje as células CAR-T entram como uma terceira opção.
Aliás, o homem que recebeu as CAR-T na quinzena passada já tinha tentado três tratamentos diferentes sem o menor sucesso. Para ele, as CAR-T foram a quarta aposta da Medicina.
Mas, pelo seu desempenho nas pesquisas, a expectativa é nas alturas. "E não pense que foi uma grande infusão", diz o doutor Kaufman. "Injetamos apenas 16 mililitros do medicamento feito com as células modificadas."
Imagine: é algo como uma colher de sopa bem cheia. Mas ali já havia supercélulas o suficiente. E elas devem continuar se replicando por um bom tempo, de prontidão para a eventualidade de o linfoma se atrever a voltar.
"Em breve, vamos conseguir identificar que são os indivíduos para quem os outros tratamentos tendem a falhar e antecipar o uso das CAR-T no caso deles", estima Kaufman. Já existem estudos empregando essas células modificadas como segunda tentativa em pessoas submetidas a um único tratamento, o qual não foi capaz de acabar com o linfoma.
Como é o tratamento
A terapia celular com as CAR-T não é tão simples, porém — e não me refiro apenas à complexidade de modificar o linfócito T geneticamente.
Antes de mais nada, o indivíduo precisa ficar um tempo sem quimioterapia ou imunoterapia. E não é qualquer um que pode se dar ao luxo de uma trégua na batalha contra o linfoma.
Só depois desse período de lavagem dos medicamentos contra o câncer é que a coleta pode ser feita por uma máquina de aférese, capaz de separar os componentes do sangue.
O que interessa, aqui, são os linfócitos T, os quais deveriam destruir toda célula que se comporte de modo estranho em nosso corpo. Mas muitas vezes deixam de enxergar justamente aquelas que são malignas.
"A bolsa com os linfócitos do nosso paciente foi imediatamente congelada, a fim de preservá-los, e enviada ao laboratório da Novartis, nos Estados Unidos", relata o doutor Kaufman.
Lá, os cientistas fizeram uma modificação genética para que esses linfócitos criassem receptores sob medida para um alvo muito específico, a proteína CD19 das células do linfoma. Ao se ligarem nelas, é como se voltassem a enxergar o câncer, passando a atacá-lo feito loucos.
"Durante esse tempo de manufatura do remédio, que durou quase oito semanas, fizemos uma terapia-ponte, isto é, um ou outro tratamento apenas para segurar a doença", conta Kaufman. "No caso, por exemplo, foi necessária uma radioterapia para conter uma lesão que estava crescendo."
Bem no início de janeiro, as CAR-T finalmente chegaram. Então, ao longo de três dias, o paciente recebeu uma quimioterapia para deprimir os linfócitos circulando em seu organismo. A ideia era tirar da frente qualquer ajudante na batalha contra o linfoma que, naquela altura, iria mais atrapalhar do que ajudar. "Fizemos isso para que os linfócitos T que foram modificados tivessem espaço para, de fato, se sobressaírem", justifica Kaufman.
As reações adversas
Apesar de a infusão ser rápida, quem recebe células CAR-T precisa ficar internado porque há sempre o risco de reações. Uma delas é uma síndrome em função da liberação de citocinas inflamatórias durante o bombardeio ao câncer.
"Pode haver febre e queda de pressão, reações semelhantes às de uma infecção", descreve Kaufman. Se a coisa sai do controle, os médicos entram com remédios para estancar a liberação exagerada dessas moléculas. O paciente de Niterói precisou dessa medicação no quarto dia após ter recebido as células CAR-T.
Outra complicação frequente é neurológica. O principal sintoma é uma dificuldade para nomear objetos e pessoas. Mas, segundo os médicos, o problema é reversível.
É por causa dessas reações que a Anvisa exige qualificações especiais para um centro se habilitar a usar as células CAR-T em seus pacientes. O CHN, no caso, é referência em transplantes. "Quem lida com transplantados está mais acostumado com esses eventos", justifica Kaufman.
O que se espera
Ainda é cedo para dizer se as CAR-T vão resolver o linfoma nesse caso de estreia no Brasil. Os efeitos sobre o tumor só aparecem em 90 dias. Pelos estudos, a chance de tudo dar certo se aproxima de 50%.
Pensando em outros casos, as indicações das CAR-T devem ser ampliadas para mais cânceres que acometem o sangue — outros tipos de linfoma, inclusive. Já para os tumores sólidos, aqueles que não são hematológicos, a história é complicada. "Para eles, os estudos ainda engatinham, talvez um pouco mais avançados no combate ao câncer gástrico", observa o doutor Gustavo Fernandes.
O ponto é que, nos tumores sólidos, enquanto você está treinando o linfócito para combater as células malignas no laboratório, elas podem adquirir antígenos completamente diferentes e se tornarem irreconhecíveis outra vez, porque vivem mudando. Será, então, que as CAR-T não têm futuro nesses tumores? "Quem sabe o que vai acontecer está muito mal informado", brinca o oncologista. É dar à ciência o seu tempo.
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