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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Neuromielite óptica: o que saber para não confundir com esclerose múltipla

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

14/03/2023 04h00

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Ninguém vai dizer que a neuromielite óptica não seja uma doença rara. Ela é: afinal, são apenas 4,5 casos para cada 100 mil brasileiros. Mas, em um primeiro momento, essa proporção chegou a surpreender o neurologista Marco Aurélio Lana Peixoto, que não esperava uma taxa tão nas alturas.

Foi ele que recentemente capitaneou o primeiro levantamento para avaliar a prevalência no país da NMO, como se referem os médicos à doença. O estudo foi realizado pelo BCTRIMS ( sigla em inglês para Comitê Brasileiro de Pesquisa e Tratamento em Esclerose Múltipla).

"É sabido que a NMO é mais frequente na população negra e de origem asiática", conta o médico, que também é professor na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). "Daí que, por causa da nossa miscigenação, era mesmo de se esperar que tivéssemos muito mais pacientes do que a América do Norte e a Europa."

Nesses continentes, a média é de 0,5 caso para cada 100 mil habitantes. "No entanto, nossos números são maiores até do que os dos países asiáticos", revela o professor Lana, justificando o seu espanto. "Isso deveria nos deixar alertas, porque é uma doença grave, capaz de pegar de surpresa pessoas de qualquer idade e causar incapacitação permanente", diz.

Como reconhecer o perigo

Infelizmente, não há bola de cristal para apontar quem terá um primeiro surto. É quando, do nada, a pessoa sente uma dormência nas pernas, quem sabe nos braços e, às vezes, no rosto também. Junto com essa sensação pode surgir a fraqueza, dificultando o andar.

Ou, ainda, a urina parece presa: apesar da vontade de fazer xixi, ele demora a sair. Para outros, porém, é exatamente o contrário e o desejo de urinar se torna urgente. A constipação intestinal é mais uma pista.

E, claro, os olhos podem ser os primeiros a enxergar a ameaça. Um deles ou os dois passam a ver o mundo como se tudo estivesse embaçado, assim de repente.

Tudo isso é capaz acontecer ao mesmo tempo ou a pessoa pode ter apenas uma coisa ou outra. "Uma característica é que esses sintomas não ficam na mesma. Eles vão piorando um dia após o outro até completarem uma semana", ensina o professor Lana.

Portanto, se o indivíduo não correu imediatamente ao médico, que ao menos ele busque esse profissional na manhã seguinte, ao notar o agravamento.

"Não há nada que possamos fazer para evitar o primeiro ataque da NMO", admite o neurologista. "Mas o tratamento correto, com altas doses de corticosteroides na veia durante a crise e prescrição de imunossupressores depois, pode impedir um segundo, um terceiro, um quarto ataque."

Faz total diferença evitá-los. Pois, a cada vez que um deles acontece, o estrago é grande — e não tem volta. O desafio é acertar no diagnóstico. Até porque ainda é muito comum a NMO ser confundida com esclerose múltipla. E aí é que está: o tratamento de uma não vai ajudar em nada a outra.

No que as duas doenças são iguais

"Durante muito tempo se achou que a NMO fosse uma derivação da esclerose múltipla, uma espécie de manifestação mais concentrada dessa outra doença", conta o professor. Mas não é nada disso.

No Brasil, segundo ele, há um diagnóstico de NMO para cada quatro de esclerose múltipla. Em comum, podemos dizer que os dois problemas são autoimunes.

As células de defesa por alguma razão se revoltam e, em ambas as condições, passam a atacar o sistema nervoso como se ele fosse um completo estranho ao organismo. Mas aqui terminam as semelhanças. Agora, entenda as diferenças.

A localização dos alvos

Tanto na neuromielite óptica quanto na esclerose múltipla, o sistema imune golpeia estruturas do sistema nervoso central. Só que, como o próprio nome indica, na esclerose os pontos de ataques são múltiplos, provocando consequentemente uma variedade muito maior de sintomas.

Nela, os estragos feitos pelos anticorpos podem se espalhar por todo o cérebro, pela medula espinhal, pelos nervos ópticos e pelo cerebelo, que é a estrutura encefálica encarregada da coordenação dos movimentos e pelo equilíbrio.

"A gente nota nos exames de imagem que esses pontos inflamados por causa da reação autoimune são intermitentes. Eles surgem, depois muitas vezes somem parcialmente e, então, voltam a aparecer", descreve o médico. Ou seja, ficam em um vaivém constante.

Já na neuromielite óptica as investidas do sistema imunológico contra o próprio corpo acontecem predominantemente nos nervos ópticos, causando perda de visão, e na medula espinhal, tendo como consequência desde uma redução de força à paralisia.

"Isso, porém, também pode acontecer na esclerose múltipla, dentro da sua diversidade de manifestações. Daí a confusão que todos faziam", explica o especialista.

A maior de todas as diferenças

No início do século passado, os cientistas descobriram um anticorpo presente no sangue de indivíduos com NMO — é só neles. E o que esse anticorpo exclusivo faz é atacar uma proteína importantíssima para o sistema sistema nervoso, Ela se chama aquaporina.

O papel da aquaporina é retirar água da circulação e transportá-la até as células nervosas para hidratá-las. Imagine, então, o perrengue quando ela é destruída, desencadeando um processo inflamatório daqueles.

"Algumas partes do sistema nervoso têm maior quantidade de aquaporina por natureza porque parecem necessitar de mais líquido: o nervo óptico e a medula espinhal, por exemplo", diz o professor.

Portanto, dá para entender por que razão terminam sendo as grandes vítimas. E, como o ataque à aquaporina é um fenômeno que só é observado na NMO, ficou provado que ela era uma doença à parte.

Muito mais mulheres

Toda doença autoimune costuma acometer mais o sexo feminino. Até aí, nenhuma novidade. Mas, seguindo com as comparações, a esclerose múltipla é três vezes mais frequente em mulheres do que em homens. Já a neuromielite óptica é nove vezes mais incidente nelas do que neles.

"No nosso estudo, foram seis mulheres com NMO para cada homem", conta o professor. "Mas em outro trabalho que estamos conduzindo, que será mais abrangente porque avaliará os casos no Brasil, estamos encontrando até dez mulheres com essa doença para cada homem com o mesmo diagnóstico", ele antecipa.

Idades diversas

Enquanto a esclerose múltipla tende a ocorrer mais em mulheres jovens, sendo raríssima em crianças e em quem já passou dos 60 anos, a neuromielite óptica não tem o menor preconceito de idade.

"Embora surja mais em adultos de 30 a 40 anos, ela também acontece muito crianças e em pessoas mais velhas", nota o neurologista. "Nenhuma faixa etária está protegida da NMO."

Para entender o Brasil

Doenças como a neuromielite óptica resultam da interação entre os genes de cada um e o ambiente.

Em relação às características genéticas, um ponto a se observar examinando o país como um todo é se, nas regiões com maior proporção de pessoas negras, o taxa de casos não seria até maior do que a encontrada em Minas Gerais.

Mas, mesmo que não se altere, o que temos hoje — os tais 4,5 casos por 100 mil habitantes — é uma prevalência tão mais elevada do que a de outros cantos do mundo que faz o neurologista crer na possibilidade de que os fatores ambientais teriam, por algum motivo, um peso até maior no Brasil. Entendê-los será um novo capítulo, esclarecendo ainda mais essa história que começou tão confusa, misturada com a da esclerose múltipla.