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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Gripe aviária: será que uma nova pandemia se aproxima?

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

31/05/2023 08h06

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Desde o início dos anos 2000, pelo menos, os cientistas se preparam para o dia em que um vírus de gripe vindo das aves irá causar um estrago danado na espécie humana.

Há motivo para temer essa possibilidade: quando foram sequenciar os genes do tipinho que estava por trás das pandemias de gripe do último século, encontraram o material genético do influenza aviário combinado com o dos vírus que costumam causar a gripe em gente como a gente.

Foi esse embaralhamento dos vírus delas com os nossos que causou a temida gripe espanhola em 1918, só para você saber.

As pessoas infectadas, então, tinham uma probabilidade até 20 vezes maior de morrer do que se tivessem sido acometidas por uma gripe clássica. Embora os sintomas parecessem iguais no início, até mesmo jovens de seus 18, 20, 30 anos desenvolviam uma bronquite que deixava seus pulmões necrosados, o que significava o seu fim em uma semana, no máximo.

Aconteceram outros surtos, igualmente preocupantes, de lá para cá. Por exemplo, em Hong Kong, na China, entre 2001 e 2003, quando de 40% a 70% das pessoas contaminadas por um influenza H5N1 —este que está dando tanto no que falar agora— apresentaram falência respiratória e renal em um curto intervalo de tempo.

"Em 2019, nós nos preparávamos para uma pandemia de gripe de origem aviária assim, bem mais séria, quando o Sars-CoV-2 da covid-19 chegou. E continuamos nos preparando agora, porque já entendemos que esse é um fenômeno que pode acontecer", ouvi da médica infectologista e virologista Nancy Bellei no último sábado (27), quando ela participou do "Controvérsias em Imunizações", em São Paulo, evento concorrido da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Foi lá que lançaram a seguinte pergunta a essa professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que é membro da International Society of Influenza and Respiratory Viruses Diseases e consultora da Organização Mundial da Saúde: mas, afinal, qual o risco?

O jogo do vírus

"Hoje, estamos diante de um vírus influenza H5N1 que provocou pouquíssimos casos em seres humanos até o momento", explicou Nancy Bellei. "Em compensação, há um enorme espalhamento em outras espécies, como nunca visto antes." Aí é que está...

Pense que o RNA de um vírus influenza qualquer não é feito aquela fitinha única que a gente vê desenhada nos livros de biologia e em todos os cantos por aí. Na vida real, ele é todinho segmentado. "Por isso, dentro das células, funciona como um baralho em que o vírus, a cada vez que se replica, pode trocar de cartas", explica a professora.

Ou seja, ao se espalhar por outras espécies, ele pode fazer uma boa mão com cartas dos vírus influenza que costumam infectá-las, pegar algum curinga e, com ele, conseguir a jogada de entrar nas células humanas.

Ou, ainda, graças ao contato do homem com os animais domésticos que esse influenza passou a infectar, acontecer um "jump", como dizem os virologistas usando o termo em inglês —ou um salto, em bom português— direto para a espécie humana.

As chaves para entrar

Há pelo menos 10 mil anos, o homem conhece o influenza. Para infectar o organismo humano, o vírus da gripe usa uma proteína, a hemaglutinina, como a chave para se encaixar no receptor de suas células. "A hemaglutinina está para ele como a proteína 'S' está para o coronavírus", compara a virologista.

Nas células ciliadas do trato respiratório superior —bem no seu nariz, por exemplo!—, há milhões de receptores feito fechadura pela hemaglutinina se encaixar e a gripe, dessas que a gente sempre pode ter, ser transmitida.

O influenza das aves, porém, usa outra chave, que se encaixa em um receptor chamado alfa-2,3, o ácido siálico. E esse receptor, na maioria das pessoas, só se encontra no trato respiratório inferior.

Desse modo, não é tão fácil para o influenza ser transmitido para seres humanos —ele precisaria se adaptar para entrar por outro receptor. Por enquanto —ao menos por enquanto— estamos com sorte.

Como surge um H5N1?

Todas as aves aquáticas são reservatórios de influenza, como os H5, que se abrigam em seu trato intestinal e, ali, replicam pouco. Por isso elas não ficam doentes.

"No entanto, de vez em quando surge nelas um vírus de alta patogenicidade", explica a professora. Este consegue se replicar não apenas no aparelho digestivo, mas nos mais diversos tecidos dessas aves, que então despencam do céu, mortinhas, depois de uns dois dias com a infecção.

"Para o homem, até aqui, ainda há pouco perigo, porque o vírus continua sem aquela proteína que outros influenza usam para entrar em suas células", conta Nancy Belli. "No entanto, um vírus assim pode matar criações de animais inteiras."

Segundo ela, é por essa razão que, quando aparece no solo o corpo de uma ave migratória, a orientação é para fazer vigilância em um raio de 10 a 40 quilômetros. As criações correm perigo. E, se alguma delas for dizimada pela gripe aviária, sabemos que, no fundo, a gente também.

"Os suínos, por exemplo, são animais que podem se infectar tanto com os vírus humanos quanto com os aviários", ensina Nancy Bellei. Daí que, em seu organismo, um é capaz de trocar "cartas" genéticas com outro. Ou um tipinho H5 pode dar o "jump" direto para o organismo da pessoa que estava cuidando de perto daqueles animais.

Na espécie humana

"O homem geralmente se infecta com os vírus da gripe H1, H2 e H3", diz Nancy Bellei. "Só que, eventualmente, alguém pega um influenza zoonótico." Ou seja, pega um tipo que costuma infectar outras espécies, como as aves.

Nos EUA, o monitoramento da gripe aviária anda bem forte desde 2022. Isso porque de 2019 para cá, já aconteceram surtos de um influenza mais patogênico, que andou matando aves migratórias em um total de 40 estados de seu país e do Canadá.

Em lagos congelados, os americanos encontraram amostras de vírus influenza mais patogênicos em fezes de aves que tinham se dissolvido nas águas —lembre-se que ele costuma viver no intestino delas.

Nesse período recente, os americanos também ficaram de olho em 4.429 indivíduos que foram expostos de alguma maneira a aves infectadas. Entre eles, 140 desenvolveram sintomas respiratórios e 58 apresentaram suspeita de ser mesmo a gripe aviária. Mas apenas um caso se confirmou pra valer.

"Existem estudos que mostram pessoas com anticorpos para o influenza aviário —geralmente, trabalhadores em criações de animais— e que, no entanto, nunca reportaram um caso dessa gripe", contou a professora Nancy Bellei no evento da SBIm. Isso levanta a suspeita de que possam existir indivíduos infectados e completamente assintomáticos.

Se é assim, a questão é que os cientistas não fazem a menor ideia de qual a proporção de pessoas que se infectam com um influenza de origem aviária e não ficam com sintomas. Nem sabem qual seria a característica dessa gente que diminuiria o seu risco.

Quando a infecção acontece, talvez aquela pessoa tenha mais receptor alfa-2,3 no trato respiratório superior. E, se o influenza das aves conseguir ir fundo, ou melhor, se alcança os pulmões, a coisa fica mesmo feia. Ora, os alvéolos pulmonares têm esse receptor e, neles, o vírus entra à vontade.

A doença que provoca, então, é fortíssima. "Nosso organismo parece não ter mecanismos para resolver a inflamação que ela provoca nos pulmões", informa Nancy Bellei. "A letalidade supera os 50%."

Como realmente estamos neste momento

Os estudiosos dizem que faltam mutações em cinco pedaços —ou sítios, como preferem dizer— para o influenza das aves conseguir infectar com facilidade o organismo humano.

E, sim, como há um maior espalhamento por diversas espécies e criações de animais domésticos nos últimos tempos, existe um perigo igualmente maior de ele se adaptar para isso.

Mas não há apenas más notícias. "Já temos remédios antivirais para a gripe, o que não havia para a covid-19", compara Nancy Bellei, contando, inclusive, que acaba de ser aprovado nos EUA mais um deles, em dose única, capaz de diminuir tremendamente a carga do influenza, dando chance para as defesas debelá-lo.

Também —porque ninguém é bobo— já foi disparada a corrida para vacinas e há várias contra o H5N1 sendo testadas com sucesso

"Acima de tudo, depois da pandemia de covid-19, a população já conhece a importância de medidas não farmacológicas, como a higienização das mãos e o uso de máscaras, se necessário", acredita a médica. "Ela sabe o seu papel no controle de uma pandemia."

Será? Às vezes, confesso, tenho menos fé na humanidade. Acho que precisamos nos preparar, paralelamente, para a teimosia.