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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Brasileiros com diabetes deveriam prestar mais atenção nos rins

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

15/06/2023 04h00

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A quem tem diabetes, atenção!

Se fosse só pela filtração daquelas impurezas que surgem ao final de cada dia de trabalho do nosso organismo, os rins já mereceriam todo o cuidado do mundo.

Quando funcionam mal, as toxinas sobrando no sangue podem levar, por exemplo, a disfunções cognitivas que, muitas vezes, se confundem com demências. Mas, não, são rins arruinados que estão por trás.

Tem gente que, por causa dessas mesmas moléculas que não escoaram com a urina como era de se esperar, fica inteira se coçando. É que, acumuladas na pele, elas provocam um prurido intenso que, pior do que ser desagradável, é capaz de abrir brecha, literalmente, para a entrada de uma bactéria. Afinal, nossas unhas, ávidas para acabar com a aflição, são cheias de imundícies.

O excesso de líquidos, lógico, fica estocado no corpo quando os rins estão em frangalhos. As pernas incham. A região ao redor dos olhos fica empapuçada. E o que não está refletido no espelho é o sangue se tornando anêmico — daí que bate aquele cansaço.

Isso porque, apesar de a filtragem ser sempre o serviço mais alardeado dos rins, eles têm outros préstimos e um deles é produzir o hormônio eritropoetina, essencial para o amadurecimento dos glóbulos vermelhos.

Terminou? Que nada! Se os rins padecem, os ossos penam junto. É que boa parte vitamina D, para se tornar ativa, precisa deles. Sem isso, cálcio e fósforo não são bem absorvidos e a renovação do tecido ósseo deixa a desejar.

Ainda nem falei do coração, parceiro de tanta sofrência. Porém, só até aqui já há motivos aos montes para a gente se espantar com o resultado de uma pesquisa que acaba de sair do forno.

Encomendada pela divisão farmacêutica da multinacional alemã Bayer e realizada em diversos países pelo Instituto Ipsos, ela ouviu 500 brasileiros com diabetes tipo 2 e descobriu o seguinte: apesar de quase 7 em cada 10 entrevistados no nosso país terem noção de que complicações renais são uma das principais causas de morte em quem vive com a glicemia nas alturas, metade nunca fez uma única consulta ao nefrologista, o especialista em rins.

E olha que, entre eles, 10% tinham recebido do médico que acompanhava o seu caso a indicação para visitar esse colega. Essa consulta, aliás, demora em média três anos para acontecer após o diagnóstico do diabetes tipo 2. Tempo com folga para muitos estragos.

Ainda de acordo com a pesquisa, 58% dos entrevistados brasileiros não se preocupam demasiadamente com os rins. Têm outras prioridades. Estão mais assustados com as "complicações visíveis" do diabetes, como o risco de cegueira ou até mesmo de amputações, do que com aquilo que seus olhos não vêem. Mas aqui cabe corrigir o velho ditado, porque, se eles não vêem, o coração sente. E como sente! — inclusive, por causa dos rins afetados.

O diabetes e os rins

A própria glicose elevada já é um bocado inflamatória. "Essa inflamação pode comprometer qualquer órgão e lesionar os vasos", lembra a doutora Maristela Carvalho da Costa, coordenadora da área de nefrologia do InCor (Instituto do Coração) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. "Os capilares que levam o sangue para ser filtrado no interior dos rins não seriam exceção." A atrapalhação começa por aí, mas não fica só nisso.

Ora, o diabetes nunca anda sozinho. A pessoa com a glicemia alta também costuma apresentar um aumento da pressão arterial, do colesterol e dos triglicérides. "Dentro dos rins há estruturas chamadas glomérulos, feito microscópicos novelos de arteríolas por onde o sangue passa para as impurezas saírem", conta o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri.

Pesquisador em diabetes da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a qual também pertence à USP, ele continua: "Esse combo da hipertensão e de níveis acima do desejado de gorduras do sangue, além da própria glicemia acima do normal, leva a uma inflamação também em volta dessa espécie de novelo". Ela deixa minúsculas cicatrizes, diminuindo aos poucos a capacidade de trabalho dos rins.

Para aumentar o prejuízo, há a obesidade, que costuma ser a causa do diabetes tipo 2. "Ela provoca uma esteatose renal", diz Couri. "Isto é, forma-se uma capa de gordura ao redor dos rins que termina por comprimi-los." Isso gera mais inflamação ainda.

Por fim, a pessoa com diabetes tipo 2 tem mais aterosclerose, ou seja, placas nos vasos sanguíneos. E nem sempre a artéria renal é poupada: ela pode entupir perigosamente.

Quando os danos começam?

Os glomérulos, se já não estão mais em seu melhor estado, deixam passar moléculas grandalhonas de proteínas, principalmente as de albumina, que deveriam ficar retidas.

"Outro marcador de diminuição da filtração dos rins é a creatinina encontrada no sangue", lembra a doutora Maristela Carvalho da Costa. Os médicos calculam uma relação entre o valor da creatinina e da albumina para estimarem o quanto do tecido renal já foi lesionado.

Mas pense: se obesidade, glicose e colesterol altos, mais a hipertensão, estão por trás do diabetes e da doença renal, é possível que, ao receber o diagnóstico do primeiro, a pessoa já não tenha os rins funcionando maravilhosamente bem.

"Por isso, quando descobrimos que alguém tem diabetes, logo devemos pedir exames para checar a função renal", recomenda Couri. Segundo a doutora Maristela, se tudo estiver bem, essa checagem deverá ser repetida só dali a um ano. "Mas, quando há alterações, é preciso refazer os exames a cada seis meses e, se o resultado for preocupante, encaminhar o caso ao nefrologista."

Desde o princípio, é provável haver alguma queda na função renal. Isso porque aquele valor de glicose que crava o diagnóstico do diabetes foi estabelecido usando como critério os problemas de retina — a partir dali, existe agressão nítida aos olhos. "Só que os danos cardiovasculares podem iniciar bem antes, ainda na fase chamada de pré-diabetes", informa Couri. E, se falamos em saúde cardiovascular, os rins nunca ficam de fora.

Inimigos íntimos

"Nossos órgãos conversam por meio de uma série de substâncias, como aquelas envolvidas nas inflamações. E, aí, essa conversa não costuma ser das mais cordiais", ensina a doutora Maristela. A nefrologista descreve a relação entre rins inflamados pelo diabetes tipo 2 e o coração como "a de vizinhos que querem furar um os olhos do outro." Na verdade, essa troca de farpas tem nome na Medicina: síndrome cardiorrenal.

Por exemplo, o excesso de líquidos e de hormônios produzidos pelos rins que deveriam regular a pressão arterial dão uma canseira no peito. Mas, voltando à pesquisa da Bayer e do Instituto Ipsos, 31% dos entrevistados brasileiros ignoram solenemente que as complicações cardíacas são a principal causa de morte em quem tem diabetes tipo 2. E não compreendem que a saúde dos rins tem algo a ver com isso.

Aliás, somente 59% deles sabem que o diabetes pode acarretar em complicações renais. O Brasil foi o país latino-americano com a menor proporção de conhecedores dessa ameaça. Na Colômbia, 69% das pessoas com diabetes tipo têm ciência disso. No México, 68%.

Ameaça de diálise

Maristela da Costa acha natural que um ser humano tenha maior preocupação com aquilo cujo impacto na saúde ele conhece. "Todo mundo imagina o que é ficar cego ou perder uma perna. Mas ninguém sabe muito bem o que acontece quando os rins não funcionam direito, por mais que a perspectiva de uma eventual diálise, por exemplo, soe aterrorizante aos pacientes", diz ela, referindo-se à passagem do sangue por um equipamento para ser filtrado.

Embora esse tratamento tenha evoluído, a necessidade de diálise ainda faz despencar a qualidade de vida. "Se é que existe um lado positivo, ele seria este: quem faz diálise é um sobrevivente", pensa Couri, logo se justificando: "Quando a função dos rins cai a esse ponto, geralmente a pessoa morre do coração antes de iniciá-la, simples assim."

Novo tratamento

A realidade é que dois em cada cinco indivíduos com diabetes tipo 2 desenvolvem doença renal. Controlar a glicemia com disciplina desacelera sua progressão. E existem remédios que podem ajudar também.

Há, por exemplo, os IECA, inibidores da enzima conversora de angiotensina. Eles evitam que esse hormônio produzido pelos rins se transforme em outra molécula participante da cadeia de reações que faz a pressão arterial subir. Existem, ainda, os BRA, que são bloqueadores do receptor dessa tal angiotensina.

Na semana passada, porém, foi lançada no Brasil a finerenona, molécula desenvolvida pela mesma Bayer que promoveu a pesquisa. Diferente dos outros, ela age especificamente nos rins inflamados. Só pode ser usada por aquelas pessoas com diabetes tipo 2 que já lançam mão de Ieca ou de BRA e que apresentam uma perda de função renal de moderada a grave. É um avanço.

Mas, antes, o melhor remédio seria a informação, como a de que a doença renal diminui em dezesseis anos a expectativa de vida de pessoas com diabetes tipo 2 — e quanta coisa boa não poderia acontecer nesse tempo, se deixassem de ignorar os rins.