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Com IA, o ultrassom de carótida prevê se o seu coração vai correr perigo
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É muito raro, diria bastante improvável, uma pessoa que estava bem em um dia cair durinha, infartada, no outro. Eu sei, você já ouviu histórias assim. Mas, se existe uma verdade, ela é esta: quem vê cara não vê coração.
O sujeito que infartou não estava bem pra valer. Aliás, o sujeito que infartou não estava bem pra valer há tempos.
Muito antes de uma coronária ficar obstruída e causar o infarto, ela ganhou uma bela placa. E, antes até de se tornar visível, a tal placa começou a se formar sem pressa, secretamente, dentro da parede dessa artéria que irriga o músculo cardíaco. Um fenômeno assim, cá entre nós, não acontece da noite para o dia. Leva anos.
Seria ótimo se existisse um exame fácil, barato, zero invasivo, sem precisar de contraste, nem nada, que flagrasse o início de tudo para você se tratar sem chegar ao ponto de sofrer do coração. E parecia existir: o ultrassom das carótidas.
Ora, quem vê como estão essas duas artérias que levam o sangue oxigenado para o cérebro, uma em cada lado do pescoço, vê — aí, sim — o coração.
"As carótidas espelham o que pode estar acontecendo com as coronárias", justifica José Roberto Matos Souza, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde coordena o Laboratório de Ecocardiografia e Doppler Vascular.
Infinitamente mais fácil visualizá-las, lambuzando o pescoço de gel para o aparelho deslizar, do que bisbilhotar as artérias no interior do coração — por exemplo, submetendo-se à angiotomografia, a tomografia das coronárias, que não é encontrada em todo canto, custa caro, exige a utilização de contraste e, para complicar ainda mais, não é oferecida pelo SUS.
O problema é que, em 2019, as diretrizes europeias pelas quais os cardiologistas se orientam para adotar medidas de prevenção e tratamento da aterosclerose afirmaram que a ultrassonografia das carótidas tinha pouca serventia para apontar, cedo, quem estava desenvolvendo essa doença.
"Perdemos, assim, algo que era uma mão na roda", lamenta Andrei Sposito, professor titular de Cardiologia da Unicamp. "O mundo inteiro praticamente abandonou esse exame com a finalidade de diagnóstico precoce nesses últimos três, quatro anos."
Quer dizer, não ele. Nem o professor Matos Souza. Tampouco outro autor — o professor Wilson Nadruz, da mesma instituição em Campinas — de um trabalho que acaba de ser aceito para publicação pela Nutrition, Metabolismo and Cardiovascular Diseases, revista do respeitado grupo da Nature.
Com a ajuda inestimável da inteligência artificial, o estudo deixou claro que, ao medir a espessura de uma camada específica da parede desses vasos no pescoço — atenção, só ela e nenhuma outra camada junto, que era o que vinha atrapalhando no passado —, o ultrassom consegue, sim, apontar quem já está ficando com as coronárias encrencadas.
Os médicos notaram que, quando havia placas crescendo na surdina nas carótidas de indivíduos com diabetes tipo 2, as artérias do coração também não estavam livres delas. "Se investigássemos pessoas com hipertensão, sedentárias ou com qualquer outra condição capaz de favorecer a aterosclerose, o resultado provavelmente seria o mesmo: essa tecnologia, aliando o ultrassom com a inteligência artificial, conseguiria indicar aqueles que deveriam fazer alguma coisa hoje para não ter uma má surpresa amanhã", acredita Sposito.
Onde nasce a placa
"Imagine a artéria como se fosse um cano do qual você quer medir a parede", pede o professor José Roberto Matos Souza. "Só que, no caso, essa parede possui três camadas."
A primeira delas, olhando de dentro para fora, é a camada íntima. "O nome não é à toa: ela fica intimamente em contato com o fluxo de sangue", diz ele.
Em geral, ouvimos falar mais do endotélio, o revestimento interno dos vasos sanguíneos, que na realidade é um tapete finíssimo de células sobre o restante da íntima, que faz o papel de amortecedor.
É preciso de um certo acolchoamento porque, logo abaixo, vem a camada média, digamos que mais brutamontes, formada por músculos, responsáveis pela resistência e pela pressão, e por um tecido de sustentação que lembra uma argamassa.
A última camada, mais externa, é a adventícia, repleta de microscópicos vasos capilares. Porque a própria artéria nunca bebe do sangue que passa por ela. "Ela necessita daquele que vem de fora para retirar seus nutrientes", explica o professor.
Dessas três, porém, a que interessa nessa história é a camada íntima. "Ela é o endereço da aterosclerose", ensina Andrei Sposito. "O colesterol LDL, quando está abundante na circulação, penetra o endotélio e se abriga abaixo dele, muito antes de a gente bater o olho e dizer 'isso aqui é placa!'"
Ou seja, muito antes de um ultrassom comum mostrar a existência de pontos que seriam uns 50% mais espessos do que a região circunvizinha. Aí, enxergando a protuberância, não resta dúvida, é placa, mas já se assemelhando a um nódulo. E qual a graça quando o que se queria era agir mais cedo? Para isso seria preciso detectar espessamentos bem menores, provocados pelo LDL se acumulando na camada íntima.
Solução para o problema de antes
Os softwares que existiam anteriormente só conseguiam informar a espessura total das camadas íntima e média somadas. A primeira, quando está saudável, é mais ou menos igual em todo mundo. Já a segunda...
"A espessura da camada média varia, sendo capaz de aumentar conforme uma série de fatores, como idade, presença de hipertensão, etnia — pessoas negras tendem a ter mais músculos nela — e prática de exercício físico", exemplifica Andrei Sposito.
Portanto, era de fato difícil afirmar se determinada medida feita pelo ultrassom tinha a ver com o início de uma placa arterial. "Juntando aquelas duas camadas, não tínhamos um indicativo preciso do risco de aterosclerose", comenta Wilson Nadruz. "Se queríamos precisão, deveríamos medir apenas a camada íntima."
E foi esse o pulo-do-gato do software que ele desenvolveu ao lado do professor Rangel Arthur, da Faculdade de Tecnologia da Unicamp, com a colaboração do professor Alexandre Gonçalves, especialista em computação da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), para o qual já entraram com pedido de patente.
Graças à inteligência artificial, o programa analisa a imagem obtida pelo ultrassom e reconhece as divisórias entre as camadas, medindo a largura de cada uma delas separadamente.
"A inteligência artificial só quer vencer"
Os colegas dizem que Andrei Sposito sempre repete tal frase. E, no contexto, essa seria uma vantagem da I.A. "As diferenças de espessura da camada média até que eram o de menos. Poderíamos criar critérios e contornar esse variação. O maior problema era que, se o paciente fizesse um ultrassom comigo e, depois, repetisse o exame com um colega, os resultados poderiam ser discrepantes", diz o professor Matos Souza.
Isso porque, segundo ele, o médico nunca é imparcial: "Se ele vê que um paciente tem obesidade ou se descobre que é fumante, sua tendência é interpretar qualquer espessura maior como placa." A recíproca também é verdadeira: considerar "normal" um leve espessamento só porque o indivíduo pratica corrida.
Já a máquina, não. Ela analisa a imagem friamente, sem qualquer interferência, usando os mesmos termos sempre. Só quer acertar.
Aliás, o novo software cria a possibilidade de, naqueles lugares onde não há médicos especializados, a imagem ser coletada até por um técnico e enviada para um centro de inteligência, onde esse programa faria todas as medições para um cardiologista.
"No futuro, quem sabe, os próprios aparelhos de ultrassom já venham com essa tecnologia acoplada", sonha o professor Nadruz, contando que já foram feitas algumas conversações com fabricantes.
Para quem servirá
Agora, a ideia é que surjam mais estudos, incluindo grandes populações para validar de uma vez por todas a tecnologia para avaliar as carótidas.
De acordo com os médicos, quando isso acontecer, o exame não se destinará a quem passou dos 60, 65 anos que, se por acaso tiver aterosclerose, já exibirá placas grandalhonas.
Essa tecnologia é voltada aos jovens, aos homens abaixo dos 50 anos e às mulheres com menos de 60 que, às vezes, menosprezam a notícia de que têm um nível de colesterol mais alto, por exemplo. É neles que a placa pode estar apenas se iniciando na intimidade das artérias. Só a inteligência artificial para revelá-la e mostrar que, sem tratamento, poderá acontecer um infarto tempos depois. E que ninguém se engane: ele não será do nada.
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