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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Semaglutida: por que ela virou mais uma arma para proteger o coração

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

10/08/2023 04h00

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Ninguém sabe dos detalhes por enquanto. Afinal, na última terça-feira, dia 8, anunciaram só o achado principal do chamado Estudo SELECT, atiçando a curiosidade pelos resultados completos que serão apresentados apenas em novembro, no encontro anual da AHA (American Heart Association).

No entanto, agora todos já sabem o suficiente para uma boa reflexão: a semaglutida reduz em 20% a ocorrência de eventos cardiovasculares que, quando não matam, podem arrasar com a vida da criatura por causa de suas sequelas.

Essa redução expressiva foi observada, ao menos, em quem já corria um risco considerável de ter uma encrenca dessas, quero dizer, um infarto ou um AVC (acidente vascular cerebral) e, eventualmente, morte por qualquer um deles.

Sim, estamos falando da mesmíssima molécula receitada para tratar o diabetes, princípio ativo do Ozempic, que na prática também vem sendo usado para promover a perda de gordura corporal, apesar de não ter essa indicação na bula.

Portanto, a mesmíssima molécula que vive no fogo cruzado das redes sociais e do noticiário — seja porque é aplicada irresponsavelmente sem uma prescrição médica, por conta própria ou por indicação de profissionais de saúde de outras áreas (ora, tem tarja vermelha, precisa do médico acompanhando!), seja porque temos um preconceito cruel em relação à obesidade, a ponto de acharmos que uma doença crônica potencialmente grave deva ser tratada só com o suor e a boa disciplina do...doente!

Atenção que a dose aplicada em metade do batalhão de 17.604 participantes do SELECT foi maior do que aquela indicada para controlar o diabetes, que é de 1 miligrama de semaglutida toda semana.

No caso, a aplicação subcutânea semanal foi de 2,4 miligramas, a dosagem máxima de outra apresentação da semaglutida, a do Wegovy, também do laboratório Novo Nordisk, aprovado lá fora para tratar a obesidade e ainda com data incerta para aterrissar no Brasil — só sabemos que não será neste ano. E mesmo assim não se observou qualquer efeito adverso sério, desses que fariam os cientistas mandar parar tudo.

"O que vimos foi uma possível terceira indicação da semaglutida: proteger a saúde cardiovascular", afirma o cardiologista Pedro Farsky, investigador principal desse estudo no Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, que foi um dos 15 centros brasileiros envolvidos no SELECT, o qual juntou pacientes de nada menos do que 41 países, acompanhados ao longo de cinco anos.

Se tinha diabetes, ficava fora do estudo

O SELECT só aceitou pessoas com mais de 45 anos com doença cardiovascular estabelecida. Todas ou já tinham infartado ou sofrido um AVC ou, ainda, apresentado o que os cardiologistas chamam de doença arterial periférica, a obstrução de alguma artéria das pernas. Mas ninguém podia ter diabetes.

"Até porque o benefício da semaglutida para quem tem diabetes já havia sido comprovado", justifica Farsky, citando o estudo SUSTAIN 6, publicado no New England Journal of Medicine faz tempo, em 2016.

E faz mais tempo ainda que a Medicina sabe que uma glicose nas alturas na corrente sanguínea faz estragos nas artérias. Era esperado que o coração ficasse protegido só pelo fato de a semaglutida tirar o seu excesso de circulação, ao estimular a secreção do hormônio insulina — aquele que bota esse açúcar para dentro das células — e ao mesmo tempo diminuir a secreção do glucagon, outro hormônio produzido pelo pâncreas, que faz justamente o contrário, isto é, aumenta a glicose no sangue.

Portanto, além de já ser algo bem conhecido, se esse novo estudo, o SELECT, aceitasse indivíduos com diabetes, iriam dizer que qualquer bom resultado para o coração seria por causa desse mecanismo de ação. "E, desta vez, o que queríamos ver era se o tratamento da obesidade, por si, reduziria o risco de problemas cardiovasculares."

Segundo o cardiologista, isso acontece quando pacientes emagrecem depois de serem submetidos à cirurgia bariátrica. "Mas nenhum fármaco tinha mostrado algo parecido", diz ele. Até então.

Um efeito além da perda de peso

Talvez você questione, como eu questionei: mas será que o número de infartos, de AVCs e de mortes por doença cardiovascular, os três desfechos analisados no estudo, não despencaram só porque as pessoas emagreceram? "Consigo ver a pergunta em sua testa e adianto que não é bem assim", me diz Pedro Farsky.

O cardiologista conta que a semaglutida tem duas ações importantes. Uma delas é contra a aterosclerose. Ou seja, ela reduz a formação daquelas terríveis placas nas artérias, inclusive naquelas que irrigam o próprio coração, as coronárias.

Outro ponto é mesmo o emagrecimento, afastando uma série de problemas que são consequência da obesidade. Só pelo fato de alguém eliminar gordura corporal, o controle glicêmico já melhora, os níveis de colesterol e de triglicérides no sangue tendem a diminuir, a pressão alta costuma baixar e um estado de eterna inflamação alivia.

"Agora, o quanto desse efeito positivo da semaglutida para o coração tem a ver com o controle da obesidade e o quanto tem a ver com sua ação contra a aterescolerose, isso a gente não consegue distinguir", diz Pedro Farsky.

E se a pessoa perde peso sem a semaglutida?

Outra pergunta na minha testa. "Primeiro, quando você começa a perder peso, seu organismo ativa uma série de mecanismos que vão fazer de tudo para o seu corpo recuperá-lo", lembra o médico.

O uso contínuo do remédio, por sua vez, impede o ponteiro da balança de voltar a subir. A semaglutida, aliás, deverá ser usada pelo resto da vida para o organismo não engordar de novo. Ou tudo será como antes.

"Além disso, todos os estudos com a nova geração de medicamentos para obesidade, incluindo aqueles com a semaglutida, mostram que o grupo controle, isto é, aquele que não usou remédio, perde apenas cerca de 3% do peso contra algo acima de 15% em quem foi medicado."

Vale esclarecer que, no SELECT, metade dos participantes recebeu a semaglutida. Outra metade, toda semana, aplicava sem desconfiar um remédio falso. Nem os pesquisadores sabiam quem estava em qual dos dois grupos. Mas ambos foram igualmente orientados para seguir uma dieta e fazer exercício físico. A redução da doença cardiovascular, porém, foi significativa apenas na turma da medicação.

Quando a gente está só com alguns quilos a mais

O interessante é que o estudo incluiu participantes com IMC (índice de massa corporal) acima de 27. Ora, para alguém ter obesidade, o IMC deveria ser igual ou maior do que 30, calculado pegando seu peso em quilos e dividindo esse número pelo de sua altura, em metros, ao quadrado.

Um resultado na faixa entre 25 e 29,9, porém, indica que o sujeito está com sobrepeso. E uma pessoa que não tem obesidade e, sim, alguns quilos a mais, costuma achar que emagrecer é uma opção por questões estéticas. Bem, nem sempre é.

A questão é que, quando ficam muito cheias e hipertrofiadas, as células de gordura, ou adipócitos, passam a secretar determinadas moléculas, as citocinas, que inflamam o organismo da cabeça aos pés.

Elas aumentam a permeabilidade dos vasos sanguíneos. O colesterol, então, se deposita ali com maior facilidade para formar as tais placas. Com a inflamação constante, surge ainda a resistência à insulina, que seria o estopim do diabetes tipo 2.

A pressão pode subir. O indivíduo também tende a acumular mais gordura no fígado, a desenvolver artrite que, por sua vez, dificulta a prática de exercício bons para a saúde do peito. É uma bola de neve.

Tudo isso é frequente em quem está IMC acima de 30: "No entanto, mesmo aquela pessoa com obesidade que aparenta estar metabolicamente saudável exibe um risco quatro vezes maior de ter diabetes, 76% maior de apresentar insuficiência cardíaca e 28% maior de desenvolver doença renal", exemplifica o cardiologista.

No sobrepeso, é bem verdade, a situação só se revela igualmente preocupante para o coração quando alguém com IMC acima de 27 já tem algum fator de risco — como a hipertensão, o diabetes ou se, feito os participantes do SELECT, já infartou ou teve um AVC. Aí, o sobrepeso precisa, sim, de tratamento.

Perguntas no ar

"Mas será que a redução de eventos cardiovasculares com o uso semaglutida foi grande também nos participantes que só tinham sobrepeso? Ou será que foi muito maior em quem já tinha obesidade? E será que, nesses cinco anos, menos gente desenvolveu diabetes?", é o que Pedro Farsky se pergunta depois da notícia de anteontem.

Dúvidas assim terão de aguardar, no mínimo, até novembro. Uma resposta já temos: tratar o sobrepeso e a obesidade é proteger o coração. E a semaglutida acaba de deixar essa evidência na cara.