Lúcia Helena

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Reportagem

Quer afastar doenças? Então se preocupe mais com o que você deixou de comer

Dizem que o peixe morre pela boca. O ser humano, também. Mas não por aprender a fazer uma receita de bolo de chocolate com leite condensado, como sugere um vídeo com altos teores de terrorismo nutricional que viralizou na semana passada. Ora, nutricionistas com boa formação não servem ciência em prato tão raso.

Até porque, tão importante quanto olhar para as "iscas" que abocanhamos — os apelativos produtos ultraprocessados seriam anzóis nessa analogia —, é prestar atenção naquilo que andamos deixando cada vez mais de comer. Já fez essa reflexão à mesa?

Para evitar as DCNTs, isto é, as doenças crônicas não transmissíveis — como o diabetes, a hipertensão, a obesidade, a osteoporose e até mesmo o câncer —, procure focar nos alimentos saudáveis que, hoje, mal e mal fazem parte da sua rotina e que provavelmente não alcançam as porções recomendadas.

Foi isso o que fizeram pesquisadores da McMaster University, no Canadá, que lideraram um estudo publicado no mês passado no European Heart Journal.

Eles analisaram dados de cerca de 245 mil pessoas de 80 países, incluindo o Brasil, e concluíram que o fato de a gente não comer porções suficientes de seis alimentos — seis alimentos apenas — já aumenta significativamente o risco de alguém ter uma doença cardiovascular grave, alavancando o número de mortes e incapacidade por sequelas de infarto e AVC (acidente vascular cerebral).

Anote a meia-dúzia que não poderia faltar na lista de compras. Comece pelas frutas, duas ou três todo santo dia, sem exceção. Verduras também, duas ou três porções. Capriche ainda mais nos legumes, servidos em três ou quatro porções diárias.

O quarto alimento: uma oleaginosa qualquer, feito as castanhas, as amêndoas, as nozes... Um punhado pequeno delas a cada jornada bastaria, dizem os autores do tal artigo. Como fonte de proteína no almoço e no jantar, prefira um pescado sempre que possível. E, finalmente, consuma leite integral e seus derivados duas vezes ao dia.

Repare: ao menos nessa investigação, a versão integral dos laticínios foi mais associada à prevenção de problemas cardiovasculares, mas dentro de todo um contexto de uma dieta cheia de fibras e vitaminas, lembrando que algumas delas dependem de gordura para uma boa absorção.

Estudos como esse reforçam a preocupação da nutricionista Ana Maria Pita Lottenberg, uma das pesquisadoras mais respeitadas nessa área em todo o país, que, agora, coordena a graduação em Nutrição da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, curso que abriu inscrições para o vestibular de sua primeira turma em 2024.

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Ela justifica sua apreensão: "No nosso país, a população está consumindo, em média, 1/2 porção de fruta por dia. É muito pouco. E apenas um em cada três brasileiros ingere hortaliças regularmente. Isso sem contar o hábito de comer arroz com feijão, que está caindo enquanto todas as diretrizes para a prevenção do câncer deixam claro o papel das fibras na alimentação, que têm nos grãos uma grande fonte."

Problemas de comunicação

Claro que é preciso o bom senso de não exagerar, nem mesmo nesses itens considerados saudáveis. Ora, o excesso de calorias leva à obesidade que, por sua vez, favorece muitas das outras doenças crônicas — diabetes, hipertensão, câncer, gordura no fígado...

Para Ana Maria, as pessoas já entenderam que o cuidado com a nutrição é fundamental para alguém não adoecer e daí que ficam acompanhando tudo o que aparece na internet sobre o assunto. "Mas o impressionante é que, mesmo assim, a informação correta sobre o que seria uma alimentação capaz de garantir mais saúde não chega até elas", lamenta a professora.

Em sua opinião, o Brasil precisa de mais de nutricionistas que sejam preparados para trabalhar com saúde pública e até mesmo em hospitais, recebendo inclusive uma boa base de matemática para que saibam atuar na gestão de serviços e, acima de tudo, fazer uma interpretação melhor dos artigos científicos, fugindo da cilada de propagar modismos."Afinal, o cenário das doenças que têm vínculo com a alimentação é sério. Precisamos comunicar o que comprovadamente as pessoas deveriam comer mais", diz ela.

Porção de encrencas

No Brasil, no ano de 2019, as doenças crônicas não transmissíveis foram responsáveis 1,8 milhão de internações só no SUS (Sistema Único de Saúde) e por mais de metade, ou 54,7%, das mortes em geral.

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Os dados são do Ministério da Saúde que, em seu plano de ações para enfrentá-las, estabelece a meta de aumentar o consumo de frutas e hortaliças em 30% até 2030. E fique sabendo que, mesmo se ela for atingida, ainda faltará um bocado. Isso porque, hoje, oito em cada dez brasileiros não ingerem a recomendação mínima desses alimentos.

Para sublinhar a necessidade de recuperar esse consumo, a professora Ana Maria cita um outro trabalho, este publicado pela The Lancet pouco antes de a pandemia explodir. Os pesquisadores examinaram a dieta das pessoas em 195 países — de novo, o Brasil entre eles — para saber o impacto do consumo de determinados alimentos nas tais DCTNs.

O sódio do sal de cozinha

Pois bem: contrariando o raciocínio de mirar no que está faltando, o sódio realmente deveria entrar menos na panela e o saleiro precisaria ficar fora da mesa. Sua redução, parece, é o fator mais decisivo de todos. Aliás, fique esperto porque os alimentos ultraprocessados são cheios dele.

Os autores do artigo apontam que, se as pessoas tivessem diminuído o consumo de sal — logo, reduzido a ingestão do mineral contido nele, que leva a pressão arterial às alturas —, isso teria poupado mais de 3 milhões de vidas em 2017, bem como teria evitado cerca de 255 milhões de casos de complicações e incapacidade provocados por doença cardiovascular. Pitadas a menos já dariam esse enorme resultado.

Mais grãos integrais

Outras 3 milhões de mortes não teriam ocorrido — de novo, no ano de 2017 —, se a humanidade consumisse grãos integrais diariamente. E esse hábito também impediria que 82 milhões de indivíduos vivessem cheios de limitações impostas pelo agravamento das DCTNs. "Os grãos, no caso, seriam integrais", ensina Ana Maria.

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Se comêssemos duas ou três frutas

Com essa porção diária, 2 milhões de mortes seriam evitadas ao longo de um ano e, ainda, não teríamos ao redor do globo outras 65 milhões de pessoas com alguma incapacidade provocada por uma doença crônica não transmissível nesse mesmo período.

"Laranja, banana e outras frutas comuns nas nossas feiras e mercados são extremamente saudáveis. Não há razão para o nutricionista indicar frutas vermelhas, por exemplo, que custam caro para o bolso dos brasileiros", pensa a professora.

O nutricionista em pontos estratégicos

Para reverter esse quadro em que faltam alimentos saudáveis no prato e sobra desinformação disfarçada de conteúdo sobre saúde, o nutricionista precisaria ocupar pontos estratégicos. Ana Maria relata que, na graduação que ajudou a desenhar, os estágios serão no pátio de 3.470 metros quadrados que produz cerca de 10 mil refeições diárias oferecidas no Hospital Israelita Albert Einstein. Mas a experiência clínica dos alunos será conquistada, além de no próprio Einstein, em hospitais públicos paulistanos, como o do M'boi Mirim e o Vila Santa Catarina, e nas UBS — um espaço, diga-se, fundamental nessa história.

Existem nutricionistas nas Unidades Básicas de Saúde. "Mas, com frequência, há um só profissional em cada uma delas. Isso não apenas faz com que a pessoa demore para ser atendida pela primeira vez como cria intervalos muito longos entre as consultas", nota Ana Maria Lottenberg. No contexto, é um problema.

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A ADA (American Diabetes Association) revisou diversos estudos e concluiu que, para ter uma mudança no padrão alimentar e em outros ingredientes do estilo de vida, você precisaria de, no mínimo, 16 encontros frequentes com uma equipe multidisciplinar — nutricionista presente nela, óbvio.

"Um outro grande estudo acompanhou cerca de 800 pessoas que seguiram diferentes dietas para perda de peso e que podiam fazer consultas semanalmente", conta Ana Maria. "Muitas delas, de fato, perderam peso. Mas o que fez maior diferença para o sucesso do tratamento nutricional não foi o tipo de dieta e, sim, a frequência dos encontros com o profissional de saúde."

Portanto, precisamos de mais nutricionistas nos locais onde as pessoas buscam tratamento para as DCNTs, mostrando que é uma atitude vã — e frequentemente desnecessária — demonizar um doce, ainda mais sem morder nem sequer uma única fruta.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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