Lúcia Helena

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Gota: dor no dedão do pé indica o problema, até mesmo em jovens

Uma dor latejante fará a criatura examinar o que estaria acontecendo de errado com o seu dedão do pé. E, vendo-o todo inchado e vermelho feito um pimentão, irá coçar a cabeça, tentando lembrar quando deu uma topada, sem encontrar o incidente na memória. Acontece desse jeito com muita gente.

Dessa vez, o episódio poderá ficar por isso mesmo, isto é, se não for a um médico por causa da dor insuportável ao andar para cima e para baixo. Sim, tudo irá passar dez ou quinze dias depois, mesmo sem o dono do dedão mexer uma palha — digo "dono" porque, se imaginamos alguém jovem, o problema é bem mais frequente nos homens.

A história, quem sabe, precisará se repetir uma ou duas vezes até o infeliz procurar ajuda, aí já desconfiado de que a causa não seria uma quina de mesa. Talvez, então, se surpreenda ao ouvir o diagnóstico: gota, palavrinha que, ao pingar nos nossos ouvidos, soa a uma doença de pessoas mais velhas, que vivem com os joelhos ou os tornozelos inchados feito uma bola.

Mas a imagem é bem equivocada, começando por aí: o problema, com frequência, aparece no dedão do pé, por ele ficar na extremidade do corpo, que costuma ser mais fria do que o resto. Embora, claro, possa surgir em outra articulação qualquer ou até "subir" para articulações como as dos joelhos nas crises sequintes. Nos membros inferiores, porém, a gota é bem mais comum e, nos pés, mais comum ainda.

A temperatura mais baixa, afinal, é um dos fatores que favorecem o ácido úrico presente na corrente sanguínea virar um cristal minúsculo e emperrar na articulação, ligando-se a uma de suas proteínas.

Essa molécula se mantém solúvel a uma temperatura de 37°C, que é a do sangue. Se está em excesso, porém, basta o termômetro baixar um pouco para se cristalizar. Aliás, por isso mesmo é que as crises dolorosas de gota tendem a surpreender logo de manhãzinha ou à noite, quando o clima tende a estar mais fresco.

"Nos últimos 20 anos, o número de pessoas com esse problema vem aumentando muito", conta o reumatologista Antonio Silaide de Araújo, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. De fato, saltou de algo em torno de 2,5% da população para 5%, o que dá mais de 10 milhões de brasileiros, gente à beça. As mudanças no padrão alimentar devem ter a ver com isso.

"Não se trata, porém, de uma questão só de quantidade de pacientes, mas de uma mudança no seu perfil: hoje, uma grande parte é de adultos jovens", diz o médico, com seu sotaque cearense.

Por que a gota se torna comum em adultos jovens

A gota não costuma aparecer sozinha e, sim, muito mal acompanhada de problemas que também vêm surgindo precocemente. Por exemplo, metade dos pacientes tem obesidade, de acordo com a estimativa dos reumatologistas."Cerca de 70% apresentam hipertensão e uns 30% têm diabetes ", calcula o doutor Silaide. Em suma, a gota vem no pacote da tal da síndrome metabólica.

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Melhor, então, entender aquela dor no dedão inchado ou em qualquer outra articulação do corpo como um bom aviso: "O indivíduo que sofre de gota possui um maior risco de placas nas artérias, de infarto, de um um acidente vascular cerebral", lamenta dizer Antonio Silaide, enxergando o problema articular como a ponta de um iceberg. "Por isso, não dá para tratar só a dor e esquecer todo um contexto de saúde que precisa melhorar."

E o ácido úrico?

Ele é um produto do metabolismo, mais especificamente da quebra de uma proteína chamada purina, algo que acontece sempre que as células se renovam. Ou seja, acontece o tempo inteiro e a maior parte do nosso ácido úrico vem daí.

"Mas, se a pessoa ingere muita carne vermelha e frutos do mar, que são alimentos ricos na tal purina, o ácido úrico naturalmente irá aumentar na corrente sanguínea", explica a o doutor Silaide.

Tudo bem, normalmente os rins dão conta de escoar esse excesso junto com a urina. "Mas aí é que está: nos pacientes com gota, essa excreção é menor", diz o doutor. "Portanto, eles produzem mais ácido úrico por um lado e eliminam menos essa molécula por outro", resume.

Nas mulheres, esse desequilíbrio é muito incomum antes dos 50, 55 anos, diferentemente dos homens, que podem apresentá-lo bem mais cedo. A hipótese é de que o hormônio feminino estrógeno, em alta até a chegada da menopausa, incremente a eliminação do ácido úrico pelos rins.

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Níveis próximos de 6,8 miligramas dessa substância por decilitro de sangue já costumam dar encrenca. E essa situação tem até nome difícil: hiperuricemia. Nessa dosagem nas alturas, a tendência à formação de cristais capazes de se precipitar nas articulações aumenta um bocado.

No entanto, nem toda pessoa com ácido úrico mais elevado terá gota, o que faz os médicos suspeitaram que fatores genéticos também façam parte da receita dos malditos cristais. Na realidade, quase um terço das pessoas com gota tem familiares com o mesmo tormento.

O problema do excesso de álcool e frutose

Todo mundo se lembra que é preciso maneirar nas carnes vermelhas e nos frutos do mar, quando pensa em uma dieta para diminuir o ácido úrico na circulação. Mas o álcool e a frutose dos produtos ultraprocessados, encontrada aos montes nos refrigerantes e nos sucos de caixinha, também têm culpa no cartório.

"Eles agem na outra ponta, diminuindo a excreção do ácido úrico pelos rins", justifica o doutor Silaide. No caso da frutose excessiva, de quebra ela parece facilitar a precipação dos cristais. "Estamos falando em articulações, mas essa precipitação pode acontecer em vários locais", lembra o reumatologista. E dá um exemplo: "Os cristais de ácido úrico são a segunda maior causa de pedras nos rins".

Dentro da articulação

Porém, a dor e o inchaço típicos da gota não são por nada que o minúsculo cristal faça, ele próprio, dentro da articulação, na qual se liga por ter, digamos, uma afinidade. "O problema todo é porque o organismo entende que ele não tem nada o que fazer ali", explica o médico. O sistema imunológico, então, encara a sua presença como a de um intruso. Arma-se a confusão. Ou melhor, a inflamação.

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Se essa resposta inflamatória não elimina o cristal depois de alguns dias, ele mesmo volta a ficar solúvel com o tempo. "Mas sempre recomendamos que o indivíduo não espere e comece a tomar o anti-inflamatório indicado pelo seu médico logo no início dos sintomas", informa Silaide. "As pessoas relatam que, quando acordam, mal conseguem pisar no chão de tão forte que essa dor é. Não dá para pedir para alguém suportá-la por quase duas semanas."

Os piores erros no tratamento

O anti-inflamatório irá arrancar o sujeito da crise dolorosa. "Mas ela acontecerá de novo, se ele não usar uma medicação para baixar os níveis de ácido úrico. E disso, infelizmente, aproximadamente metade dos pacientes se esquece. Este seria o erro número 1", constata o doutor.

A pessoa toma o anti-inflamatório e a dor passa. Como não sente nada, deixa a medicação para o ácido úrico de lado. Vem outra crise, ela se medica ou, pior, se automedica com anti-inflamatório e a dor passa de novo. Parece estar tudo sob controle, mas a causa continua firme e forte. "E então, quando essas crises se repetem demais, elas acabam danificando as articulações", diz Silaide. Melhor evitá-las, cortando o mal pela raiz.

Para isso, as mudanças no estilo de vida são, mais do que bem-vindas, necessárias. Um segundo erro é justamente se descuidar da alimentação e se esbaldar em churrascos entre as crises, por exemplo.

No entanto, por mais que cuidar da dieta seja essencial, muitos pacientes precisarão de medicação para o ácido úrico entrar de vez nos eixos. Ela pode agir por dois mecanismos: ou bloquear a sua formação no sangue ou aumentar a sua eliminação pela urina. O primeiro é muito mais usado, até porque o segundo tipo de medicamento aumenta o risco de cálculos renais.

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Perder peso costuma ajudar bastante

Também tem esta: é muito mais provável acontecer uma crise de gota em uma articulação que já esteja danificada. E vale lembrar que a sobrecarga do corpo sobre articulações como as dos joelhos pode causar danos. "Além disso, a obesidade é uma doença inflamatória, sendo capaz de exacerbar as crises de gota", afirma Antonio Silaide.

Por essa razão, o reumatologista acaba orientando o paciente com excesso de gordura a perder peso. "Isso fatalmente implicará em diminuir o consumo de frutose, por exemplo". No final, tudo parece meio interligado, de modo que os cuidados para resolver aquele pé dolorido acabam chutando para longe outras ameaças bem sérias à saúde.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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