Lúcia Helena

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Como a IA está revelando arritmias sem sintomas que causam AVCs

Existe, pelo menos, uma dezena de maneiras de o seu coração sair do ritmo. E, agora, a inteligência artificial (IA) está sendo usada para avisar quando isso ameaça, mais do que o próprio peito, o seu cérebro.

O risco é de acontecer um AVC, o acidente vascular cerebral. Só que as pessoas que estão por aí correndo esse enorme perigo podem nem sentir que o peito perdeu o compasso. Entre 50% e 60% das arritmias são assintomáticas. Pior: sem a IA, é provável que alguém, nessa situação, faça exames e volte para casa com coração aliviado, achando que não tem nada. Engano.

Fora do ritmo

Há arritmias e arritmias. Em alguns, a batida cardíaca fica lenta demais — e, aí, a gente está falando em uma bradicardia. Ou, ao contrário, o coração pode acelerar além da conta, do nada, sem que tenha levado um susto, nem encontrado o grande amor. Já sabe, no caso, estamos falando das taquicardias.

O coração apressadinho, porém, nem sempre causa aquela sensação de querer sair pela boca. Depois de certa idade — e olha que nem precisa de tanta idade, basta ter passado dos 35 anos, a depender dos goles de álcool ou de café —, eu, você e quase todo mundo desenvolvemos uma extrassístole, por exemplo. Calma, isso não é nada demais.

Nesse tipo de arritmia, o músculo cardíaco se contrai para bombear o sangue como costumeiramente e — pum! — se contrai de novo, sem esperar relaxar. Mas, ainda assim, quase ninguém se queixa disso. E vida que segue com esse coração que apresenta uma sístole antes da hora.

"Seguramente, o tipo mais importante de arritmia não é nenhum desses", palpita o médico cearense Eduardo Lima, líder de Cardiologia do Hospital Nove de Julho e professor colaborador da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) "O que mais nos preocupa", continua, "é um tipo conhecido por fibrilação atrial." E, bem, eu já adiantei o motivo.

Tremer em vez de bater

"Nessa fibrilação, os átrios começam a bater umas 400 vezes por minuto. E, nesse ritmo aceleradíssimo, nem têm tempo para contrair e relaxar. Ficam, então, só tremendo — ou fibrilando, como eu e meus colegas cardiologistas dizemos", conta o cardiologista, cuja trajetória no Nove de Julho se confunde com a própria formação, já que trabalha por lá desde os tempos de residência. O Centro de Arritmia do hospital paulistano é uma das referências, no país, no uso de I.A. para flagrar esse problema em gente que, em princípio, nunca imaginaria tê-lo. Aí é que está.

A tal fibrilação atrial acontece nas duas câmaras superiores do coração, lembra-se delas? O átrio esquerdo é o que recebe o sangue oxigenado que vem dos pulmões, enquanto o direito recepciona o sangue que vem cheio de gás carbônico depois de ter circulado pelo corpo.

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"Esse sangue que fica ali malparado, justamente porque os átrios vibram em vez de se contraírem, pode formar um coágulo", explica Eduardo Lima. Daí é capaz de o cérebro se ver em apuros: a bolota de sangue tende a sair em sua direção e emperrar em um de seus vasos, bloqueando a circulação. É um AVC isquêmico.

Com a chegada dos smartwatches

O potencial da IA no diagnóstico das arritmias foi notado muito por conta dos smartwatches, que começaram a detectar quando a frequência cardíaca do usuário estava alterada.

A primeira geração desses dispositivos só conseguia ver se um batimento tinha a mesma regularidade em comparação com outro, é bem verdade. "Ou seja, o relógio informava se meu pulso não era normal, mas não me contava qual tipo de arritmia eu tinha", lembra Eduardo Lima. Mais ou menos de 2017 para cá, isso mudou.

O próprio cardiologista descobriu, graças ao smartwatch em seu braço, que estava com uma arritmia específica, a ventricular — tipinho movido ao exagero nas xícaras de café, que era bem o caso desse doutor. O flagra foi possível porque a tecnologia, hoje, permite que o dispositivo faça uma das das 12 derivações de um eletrocardiograma.

Parênteses: quando grudam um monte de eletrodos pelo seu corpo, o exame vai comparando os eixos formados entre eles. Ou derivações. Uma delas é formada pelo eixo da corrente elétrica entre um braço e outro. Que, aliás, é o que o smartwatch analisa, quando o usuário encosta os dedos da outra não sobre ele, capturando, então, dois polos.

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É engraçado, mas o cardiologista "enxerga" o nosso coração tridimensionalmente naquele ziguezague desenhado pelo eletrocardiógrafo em uma tripa de papel. "É como se cada derivação fosse uma câmera, mostrando o que acontece com aquele coração visto de frente, por trás, de lado", conta Eduardo Lima. E aquela derivação que o relógio capta pode revelar justamente a batida dos átrios. "Se você usa essa função, o recado que pode aparecer no visor é 'não há indícios de fibrilação atrial', que é o que de fato importa", lembra o médico. Bem, se houver indícios, será melhor procurar um cardiologista. "Tomar remédios para evitar que os coágulos se formem será fundamental para impedir um AVC", diz o médico.

Relativamente comum e sem sintomas

Na medida em que a tecnologia conseguiu essa proeza, claro que ela se expandiu para outros wearables — os "dispositivos de vestir" e até camisetas com eletrodos inventaram! —e para os celulares. Mas o que chamou a atenção da Medicina foi mesmo o Apple Heart Study, que saiu no New England Journal of Medicine em 2019.

O nome já revela: os mais de 419 mil participantes usavam o smartwatch com a "maçã" de Steve Jobs. Ele foi o primeiro detectar a fibrilação atrial. Desse mundaréu de gente acompanhada por oito meses por pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, 2.161 receberam uma notificação de pulsação alterada. "Uma proporção até que baixa, mas média de idade dos participantes era de 40 anos e a gente sabe que as arritmias aumentam com o tempo", observa Eduardo Lima.

Ainda assim, o espantoso foi encarar que 34% desses adultos mais jovens — ou cerca de um terço — estavam com a tal fibrilação atrial, confirmada por um eletrocardiograma após o alerta dado pelo relógio. Detalhe: as pessoas haviam declarado que desconheciam ter qualquer arritmia.

Para não deixar o diagnóstico escapar

No ano passado, pesquisadores alemães realizaram um estudo com cerca de 5 mil indivíduos. Desta vez, todos acima de 65 anos. Uma parte foi submetida ao eletrocardiograma. Outra parte usou um smartwatch, sendo orientada a checar a pulsação duas vezes por dia durante duas semanas. A prevalência de diagnósticos de arritmias mais do que duplicou na turma do relógio. "Isso mostra que existem falhas e ficou claro que incorporar IA era interessante para serviços de saúde, como o nosso."

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No Nove de Julho, o Centro de Arritmias está usando uma plataforma de inteligência artificial chamada Kardia. "Todos os eletrocardiogramas do pronto-socorro e da UTI cardiológica já são analisados por ela e agora, em menos de três minutos, o especialista dá o laudo", conta o médico. A questão principal, no entanto, não é o tempo. "É não perder a chance do diagnóstico e só descobrir que alguém tinha fibrilação atrial ao investigar a causa de um AVC. Vale repetir que boa parte dos pacientes não sentia nada antes, o que é impressionante", diz Eduardo Lima, animado porque, a próxima semana, os eletrocardiogramas realizados em todo e qualquer leito do hospital também alimentarão a plataforma de IA. "Será uma busca ativa de casos dessa fibrilação", resume.

Vale acrescentar que nem sempre o coração fica tremelicando em vez de bater direito 100% do tempo. Existe a fibrilação atrial paroxística. "Nela, aquele tremor acontece por um período e para. Depois, volta", diz Eduardo Lima. "E o risco de AVC é o mesmo da forma persistente."

Moral da história: a pessoa pode fazer o eletrocardiograma em um dia no qual o coração, por acaso, está em um bom ritmo e isso mudar na manhã seguinte. A inteligência artificial, porém, é capaz de detectar indícios extremamente sutis disso nos traçados do exame, mesmo se ele for realizado em um dia em que, aparentemente, o coração esteja batendo normal. E, assim, nenhum caso passa batido.

A questão do álcool

O principal fator por trás da fibrilação atrial é mesmo o envelhecimento. Ou um problema prévio no coração, como um infarto. Fique claro que o cafezinho, já mencionado neste texto, tem sua parcela de culpa no cartório em outras arritmias — mas não, nessa. Já o álcool...

"O consumo de bebida alcoólica em qualquer dose, mesmo baixa, está relacionado à fibrilação atrial", informa o cardiologista. Claro, para quem toma uns goles a mais, tanto pior. E, saiba, nem precisa beber sempre. "A fibrilação também tem a ver com o consumo agudo", avisa Eduardo Lima. Vamos imaginar: a pessoa enche a cara no final de semana e o coração fibrila na segunda-feira. No futuro, quem sabe, a IA conseguirá também apontar quem correrá um maior risco, se fizer isso. Aos poucos, está chegando lá.

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