Lúcia Helena

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Ômicron: por que ela ainda pode nos dar muita preocupação

Ainda ontem — quarta-feira (20)—, o clima entre as pessoas que, pouco a pouco, foram ocupando as centenas de cadeiras do principal auditório do Costão do Santinho, em Santa Catarina, era de pura excitação. Estava começando a 25ª Jornada Nacional de Imunizações. Portanto, era o reencontro daquele povo aguerrido que estuda, aplica, enfim, que defende as vacinas.

Para completar, a programação do evento que marca os 25 anos da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) levantava, logo de cara, a pergunta que a maioria de nós queria fazer: e agora, qual a tendência de comportamento do vírus da covid-19? O desafio de respondê-la coube ao biólogo e virologista José Eduardo Levi, coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento da Dasa.

Não que ele, que é também professor colaborador do Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo), tenha deixado a audiência desanimada. Longe disso. Mas, digamos, Levi colocou algumas nuvens no céu que, do lado de fora do centro de convenções, estava azulzinho, destoando da lembrança de que o bicho —opa, o vírus! — continua pegando. E estamos falando de ômicron, variante que não parece ser tão digna de confiança quanto gostaríamos de acreditar.

"Quase um 'Sars-CoV-3'"

Foi desse jeito que José Eduardo Levi se referiu à variante que surpreendeu o mundo em novembro de 2021, ao ser detectada na África do Sul.

Relembrando: em meados daquele mês, ômicron foi encontrada em 300 amostras, aproximadamente, oriundas de pessoas diagnosticadas com covid-19 no país africano. E, pouco mais de uma semana depois, ela já dominava o seu território, sendo flagrada em mais de 3.000 amostras. Logo de largada, mostrou a sua enorme habilidade para se alastrar.

Talvez isso acontecesse por causa de suas 37 mutações na famosa proteína "S", usada como uma chave para entrar nas nossas células. Esse era um número cerca de três vezes maior que o de mutações na mesma proteína "S" de suas antecessoras. Ora, alfa tinha 11. Beta, 10. A gama, 12. Delta? Apenas 10, também.

Mas não era só isso. "Até então, quando surgia uma nova variante de preocupação em determinado lugar do planeta, ela competia com a outra que já estava naquele pedaço. Esta perdia espaço e sumia", conta o virologista. Mas ômicron não tem sido pressionada a ceder lugar para nenhuma concorrente. Há quase dois anos, o mundo não conhece uma nova variante. Só dá ômicron.

E por que ela seria quase um "Sars-CoV-3"? Levi explica: "Até ômicron, uma variante nunca era derivada de outra. Ou seja, alfa não veio de beta. Nem gama ou delta vieram de alfa, por exemplo. Todas elas surgiram de maneira independente. Depois de ômicron, no entanto, tudo o que aparece é uma espécie de filhote dela." São as tais subvariantes. E, sempre que surge uma subvariante mais apta — mais potente ou ainda mais transmissível —, ela se torna dominante.

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Detalhe importante: não sei se reparou, mas tem aparecido uma nova subvariante, mais ou menos, a cada quatro meses. Só quatro meses! A última delas, que os cientistas chamam de BA.2.86, foi detectada em julho passado, em amostras vindas da Dinamarca e de Israel. E tem mais de 30 aminoácidos diferentes na proteína "S" em relação à variante XBB.1.5, que dominava antes. É preciso entender o que isso pode significar.

De onde viriam essas subvariantes?

O Sars-COV-2, por incrível que pareça, não é um vírus que sofra mutações muito depressa. Ao contrário. "Em geral, são apenas uma ou duas por mês", ensina Levi. Calcule, então, o seguinte: se surgiu uma ômicron BA.2.86 com mais de 30 aminoácidos diferentes, isso significa que o vírus precisou de mais de ano para juntar todas elas. Não apareceram de repente, todas de uma vez.

Como será que a nova subvariante foi sendo moldada? Uma hipótese aponta para as pessoas imunossuprimidas, de acordo com Levi. "Elas podem pegar o Sars-CoV-2 e, por sorte, não evoluírem para quadros severos de covid-19. Mas, ao mesmo tempo, não têm uma imunidade adequada para eliminar o vírus", ele explica.

O coronavírus, então, fica por lá, com todo o tempo do mundo para adaptar àquele organismo. Leia: para adquirir mutações, como provavelmente aconteceu com BA.2.86, popularmente chamada de pirola.

E nem seria preciso infectar um grande número de pessoas para isso acontecer e a humanidade se ver diante de mais uma variante ou subvariante. "Bastaria um único indivíduo imunossuprimido ser infectado para o vírus ganhar o tempo necessário para se modificar", avisa o virologista. E não falta gente ao redor da Terra onde ômicron impera com alguma condição de saúde capaz de deixar o sistema imunológico inapto a varrer depressa o Sars-CoV-2.

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Entre os animais

Da mesma maneira como o vírus da covid-19 se espalhou pela humanidade, ele se disseminou entre diversos animais, que não adoecem e morrem. Dessa vez, aliás, fomos nós que passamos o coronavírus para eles. "E um rebote é sempre possível", nota José Eduardo Levi. Em outras palavras, os animais podem nos devolver um Sars-CoV-2 com novas adaptações. Isso já foi observado em criações de visons, por exemplo.

Enquanto ômicron continuar circulando em sua alta velocidade de sempre, más surpresas assim sempre poderão ocorrer.

Imunidade híbrida

Não damos muita bola para essa probabilidade, confiantes na ideia de que ômicron nunca nos deu motivo para esquentar tanto a cabeça. Essa nova subvariante, por exemplo, apesar de seus 30 aminoácidos alterados, não parece causar uma infecção mais séria.

Diga-se de passagem, Levi também mostrou que as ondas de covid-19, apesar de mais frequentes porque vêm surgindo novas subvariantes naquele intervalo de uns quatro meses, andam cada vez mais baixas. Melhor que continuem assim.

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No entanto, na população mais vulnerável que não tomou vacina, o vírus segue fazendo estragos, causando internações e mortes. No Brasil, na semana passada, foram 117 óbitos por covid-19.

O número só não é mais tétrico porque vivemos o que José Eduardo Levi descreve como "o melhor de dois mundos". Ora, por causa das vacinas, temos uma imunidade humoral lá nas alturas, que é a capacidade de produzir montanhas de anticorpos contra o Sars-CoV-2. "O problema é que ela não dura tanto", informa ele. "Já a infecção que, com ômicron, praticamente todo mundo já teve, não provoca essa resposta humoral elevada, mas gera uma imunidade capaz de durar mais tempo."

Ou seja, a imunidade híbrida reúne maior quantidade de anticorpos e maior duração da capacidade do organismo se defender. Mas, para isso funcionar e ômicron continuar se fazendo de boazinha, a vacina contra a covid-19 precisa fazer parte da equação. Ou não tem me-engana-que-eu-gosto.

Vacina no braço

Na primeira manhã do evento da SBIm, também se falou de perspectivas para as imunizações contra a covid-19. Os laboratórios já preparam, por exemplo, atualizações nas vacinas de RNA mensageiro baseadas nas últimas subvariantes. É que se, amanhã ou depois, surgir um tipinho mais perigoso, ele provavelmente se parecerá mais com elas do que com versões anteriores da ômicron.

No entanto, é inevitável pensar: de que adianta discutir novas vacinas contra o Sars-CoV-2, se a bivalente que aterrisou no país no início deste ano não chegou ao braço de muitos brasileiros? "Elas estão distribuídas em todos os postos do Brasil, inclusive nas áreas mais distantes", garante o infectologista Eder Gatti, diretor do PNI, o Programa Nacional de Imunizações, tesouro nacional que acaba de completar 50 anos.

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"Mas a procura está mesmo baixa", reconhece ele, que defende a criação de mais políticas que estimulem todo mundo a se vacinar. "Posso dar alguns exemplos. Médicos de várias especialidades — como o ginecologista, o urologista, o oncologista e tantos outros — devem ter clareza de que é parte do cuidado com o seu paciente indicar a vacina", diz ele. "A condição de estar com a vacinação em dia para ter direito ao Bolsa Família está de volta", continua. "E agora que estamos aprimorando o nosso sistema de informação, poderemos fazer o mesmo em outras situações, como utilizar os dados da vacinação como prova de vida na Previdência Social, só para dar uma ideia."

Segundo Gatti, todo o cenário recente, com um discurso oficial contra a vacinação, abalou a confiança nos imunizantes contra a covid-19. É lamentável. As pessoas deveriam confiar mais nas vacinas — feitas para proteger o ser humano, independentemente de suas convicções políticas — e menos, muito menos na boa fama de ômicron.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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