Esquizofrenia: nova droga poderá evitar o comprometimento cognitivo
Existem cerca de 24 milhões de pessoas com esquizofrenia pelo mundo e nenhuma delas nasceu assim. A maioria começou a apresentar sintomas, como alucinações ou dificuldade de interação social, entre os 12 e os 30 anos de idade. Na certa, já havia uma vulnerabilidade genética, mas ela sozinha não basta. Fatores ambientais, como traumas na primeira infância, quando o cérebro está formando muitas conexões, e uso precoce de maconha servem de gatilho.
E o que quase ninguém fala quando o assunto é esquizofrenia é do comprometimento cognitivo, que costuma ir piorando com o tempo, arrasando com a qualidade de vida até mais do que todo o resto, sem que se possa fazer nada, simplesmente porque não há remédio. Daí o alvoroço diante de uma candidata a medicamento, a iclepertina, que passa agora para a reta final de estudos — a famosa fase 3.
Investigadores de 41 países, o Brasil entre eles, começam a avaliá-la em adultos com esquizofrenia, que serão submetidos a testes de memória e aprendizado. O que se espera é que a molécula melhore a função cognitiva de todos.
"Bem antes de ser conhecida como esquizofrenia, essa doença era chamada de demência precoce. Na medida em que avança, a pessoa passa a ter maior dificuldade de raciocínio, memória, atenção, concentração e planejamento", lembra o psiquiatra Acioly Lacerda, que, além de ser professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é diretor da BR Trials, centro de referência em ensaios clínicos para checar a segurança e a eficácia de medicamentos. A iclepertina, molécula desenvolvida pelo laboratório alemão Boehringer Ingelheim, também está sendo estudada por lá.
Os sintomas que mais chamam a atenção
O comprometimento cognitivo costuma ser negligenciado até pela Medicina. As manifestações da esquizofrenia, de fato, são diversas. "Podemos encontrar dois pacientes com o transtorno que não terão nenhum sintoma em comum", observa o professor Lacerda. "Porque, dependendo dos circuitos cerebrais afetados, eles irão manifestá-la de um jeito diferente", explica.
Os médicos dividem os sintomas em grupos — e um paciente pode alternar em todos eles. O primeiro reúne aqueles classificados como positivos."São basicamente a acentuação de funções cerebrais que todos nós temos", define o psiquiatra.
Desse modo, o cérebro normalmente é capaz de decifrar estímulos sonoros. O cérebro do indivíduo com esquizofrenia, porém, vai além e cria "sons", porque seus neurônios na região dedicada à audição estão com a atividade pra lá de aumentada. E esses sons, produzidos em sua cabeça, soam tão reais quanto a minha voz, se estivesse falando ao seu lado. Este é um exemplo de alucinação — a auditiva é a mais comum delas. "Mas o paciente pode ter outras, como olfativas, visuais e até táteis", explica o professor.
Os delírios são mais uma forma de sintomas positivos. O paciente, no caso, não vê, nem escuta nada diferente. Mas encasqueta com uma ideia irreal: "É capaz de acreditar piamente que o vizinho está tramando contra ele, sem nunca ter visto a sua cara", exemplifica o doutor. "Ou ter o delírio de ser uma personagem importante, quem sabe o representante de Deus na Terra."
No caso, os neurônios afetados são aqueles que juntam vários dados da realidade para o cérebro tirar alguma conclusão. No paciente com esquizofrenia, ele faz isso reunindo dados que são completamente irrelevantes, levando julgamentos que não têm nada a ver.
Mais um sintoma positivo: a agitação psicomotora. A pessoa tende a ficar inquieta e, às vezes, chega a partir para a agressão física. Mas não tire conclusões precipitadas. "O paciente com esquizofrenia eventualmente pode se tornar mais agressivo, ao se estressar com alguma coisa durante as crises da doença. No entanto, vários estudos mostram que a frequência de violência nessa população não é maior do que aquela vista em pessoas ditas saudáveis", pondera o professor.
O que já tem remédio
Antigamente, tidos "como loucos" — em um português nada respeitoso, mas que reflete o pensamento de então —, esses pacientes eram internados e isolados da sociedade. "Por sorte, na década de 1950, surgiu o primeiro medicamento para tratar a esquizofrenia. A partir daí, temos uma redução drástica e contínua do número de leitos psiquiátricos para essas pessoas."
Mais do que isso: de lá para cá, temos 40 moléculas aprovadas para tratar a esquizofrenia. A boa notícia é que, com o surgimento delas, cerca de um terço dos pacientes deixam de ter os tais sintomas positivos e, no que diz respeito a eles, podem levar uma vida normal. Outro terço só tem manifestações leves e mais raras — e aprende a perceber quando está começando a ter alucinações, por exemplo, para pedir ajuda. Só o restante não responde tão bem.
A notícia nem tão boa: "Todas essas 40 moléculas têm o mesmo mecanismo de ação central, isto é, aplacam a hiperatividade dos neurônios envolvidos com a dopamina", descreve o psiquiatra. "Esse neurotransmissor, quando está muito elevado, causa de insônia e pensamento desornado aos delírios e alucinações." Ou seja, está por trás dos sintomas positivos.
Os sintomas ainda sem tratamento
O problema, de acordo com Acioly Lacerda, é que todos os investimentos realizados na última década focaram na tal atividade dopaminérgica. E isso não trata os sintomas negativos, nem os cognitivos, que foram deixados de lado.
"Os sintomas negativos são o oposto: revelam que uma rede neuronal está funcionando bem menos do que deveria", explica Acioly Tavares. "Um dos mais comuns é a alogia, isto é, a pessoa fala muito pouco, é quase sempre monossilábica."
Outro sintoma negativo é o isolamento, porque há uma dificuldade crescente para interagir socialmente. "Não devemos confundir com comportamento antissocial, de não respeitar as regras de convivência, porque não é nada disso", avisa o médico.
Há, ainda, o que os psiquiatras apontam como embotamento afetivo: as pessoas com esquizofrenia podem expressar menos os seus afetos. Aí, parecem não se alegrar, nem se entristecer com o ambiente ao seu redor. "É, ainda, comum o indivíduo com esquizofrenia desenvolver sintomas depressivos", conta o professor Lacerda.
Finalmente, o comprometimento cognitivo é outro grupo de sintomas. No jovem, o desempenho escolar e acadêmico vai, aos poucos, indo para o brejo. No trabalho, as dificuldades só aumentam. Por isso, nos últimos dez anos, as pesquisas se voltaram para essa necessidade não atendida dos pacientes com esquizofrenia, que é barrar a derrocada da cognição.
Por trás do declínio cognitivo
O que os cientistas descobriram é que a esquizofrenia envolve mais do que uma ativação exagerada dos neurônios dopaminérgicos. Ela também tem a ver com um prejuízo à neuroplasticidade.
Na doença, alguns neurônios fazem apoptose de maneira mais acelerada — uma espécie de suicídio celular — e não são substituídos com a mesma velocidade por células nervosas novinhas em folha. "Por causa disso, notamos uma atrofia em regiões cerebrais, como a frontal e temporal", conta o pesquisador.
Como age a nova molécula
A iclepertina aumenta a presença de glicina no cérebro. E, como nenhuma molécula fez isso antes, ela será considerada a estreia de uma nova classe medicamentosa, se tudo der certo.
Com mais glicina disponível, inicia-se uma bem-vinda reação em cadeia. Entenda: a tal glicina está muito relacionada a um neurotransmissor chamado glutamato, que participa da regulação da neuroplasticidade. Isso porque provoca a síntese de neurotrofinas.
"Costumo brincar que as neurotrofinas são como adubo: onde você as coloca, crescem neurônios e suas conexões. Sem contar que essas substâncias prolongam a vida neuronal", explica o professor Tavares. Com isso tudo, a expectativa é de uma correção nos prejuízos cognitivos, talvez até recuperando parte do volume cerebral perdido.
"Na fase 2 do estudo chamado CONNEX, que envolveu cerca de 500 pacientes, descobrimos qual dosagem da iclepertina seria a mais efetiva", conta o pesquisador. Agora, na fase 3 já em andamento, os cientistas comparam o que acontece com 1.758 pacientes acima de 18 anos em todo o mundo. Uma parte foi sorteada para cair no grupo que está usando o medicamento verdadeiro e outra ficou no grupo do placebo, isto é, de um remédio falso. Ninguém, claro, deixou de tomar a medicação que já usava antes para controlar o seu quadro.
Detalhe: o CONNEX é o que, em ciência, é chamado de estudo duplo-cego. Ou seja, nem sequer os pesquisadores sabem quem está em qual grupo, para não induzir qualquer conclusão.
Como o tratamento é avaliado depois de seis meses de iclepertina e o último paciente será incluído apenas em maio do ano que vem, os dados para submeter o novo medicamento à aprovação, se tudo correr como o esperado, só estarão prontos no início de 2025. E a tendência então, será estudar a droga em pacientes adolescentes no futuro, já que a esquizofrenia costuma aparecer mais cedo. Afinal, ninguém quer que seus danos sigam adiante.
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