Lúcia Helena

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Reportagem

Por que as pessoas com Down estão vivendo mais e os desafios que isso traz

Há um século, alguém que nascesse com uma terceira cópia do cromossomo 21 em suas células vivia 10, 12 anos. Mas a expectativa de vida média das pessoas com a trissomia do 21, também conhecida como síndrome de Down, foi aumentando e, hoje, muitas vezes passa fácil dos 60.

O segredo da vida longa? Ora, em boa parte ele é o mesmo de quem não tem a síndrome e que, no Brasil dos anos 1980, vivia cerca de 66 anos e, agora, espera apagar 77 velinhas. Todos nós estamos vivendo mais. Simples assim.

Ou seja: há mais saneamento, mais vacinas nos protegendo contra infecções e outros fabulosos progressos da Medicina, tanto para prevenir quanto para tratar variadas encrencas.

"No caso da população com síndrome de Down, vale destacar a mudança na abordagem das cirurgias cardíacas", diz Marcelo Altona, geriatra do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e coordenador do Projeto de Envelhecimento Saudável do Instituto Serendipidade, organização sem fins lucrativos que atua pela inclusão de quem tem deficiência.

Ele justifica: "Até a década de 1970, o fator que mais diminuía a expectativa de vida das crianças com síndrome de Down eram as cardiopatias congênitas, porque os médicos não tinham coragem de operá-las, já que o risco de mortalidade era altíssimo. Mas novas gerações de cardiologistas preferiram arriscar, vendo que, se essas crianças não fossem operadas, poderiam morrer do mesmo jeito". E, paralelamente, as técnicas cirúrgicas avançaram, corrigindo alterações no coração a que aqueles pacientes chegavam a ser 80 vezes mais propensos do que meninos e meninas sem a trissomia do 21.

Por falar em propensão, melhor esclarecer que a tal trissomia não é, nem nunca foi uma doença. É, isso sim, uma condição genética, que determina algumas características — como, aliás, os nossos genes sempre fazem — e que aumenta a probabilidade de o indivíduo desenvolver certos problemas de saúde. "E eles, claro, podem se agravar com a idade", explica Marcelo Altona. "Penso que todo mundo precisa de cuidados à medida em que envelhece e, no caso da pessoa com síndrome de Down, não tem por que ser diferente."

Uma situação nova que gera novas questões

Encontrar por aí tantos senhores e tantas senhoras com síndrome de Down é um fenômeno recente. Daí, é natural a ciência ainda não compreender tão bem se doenças típicas da maturidade seriam ou não mais prevalentes neles.

"Vira e volta alguém especula que determinados cânceres apareceriam nesses indivíduos com maior frequência e, na verdade, não temos certeza disso", conta Marcelo Altona. Lembre-se que tumores malignos são mais associados à idade madura, por isso, no passado, não tinha como se obter respostas.

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Há alguns meses, o urologista Fernando Korkes, também do Hospital Israelita Albert Einstein e chefe do Grupo de Uro-Oncologia da Faculdade de Medicina do ABC, publicou uma metanálise, comparando nada menos do que 350 estudos que incluíram 16.248 voluntários com a trissomia do 21. Instigado pelo pessoal do Instituto Serendipidade, ele queria checar se os tumores urológicos, sobretudo o de testículo, eram mais comuns nesses pacientes do que na população em geral. A resposta foi negativa. O risco é igual.

Já a obesidade é, de fato, mais vista em quem tem a síndrome — lembrando que, para qualquer um, o ponteiro da balança sobe com maior facilidade com o avançar da idade, se não há a adoção de hábitos mais equilibrados.

"As famílias tendem a ter um excesso de zelo", nota o doutor Macelo Altona em seu dia a dia. "E às vezes faz parte disso a seguinte ideia: 'já que ele ou ela não pode ter tudo, vamos deixar, ao menos, comer o que gosta', o que, no fundo, é um baita capacitismo." O passe livre para guloseimas resulta em uma dúvida: "Fica difícil saber até que ponto diagnosticamos mais casos de obesidade por causa da genética desses pacientes e até que ponto o ganho de peso tem a ver com esse ambiente", diz o geriatra.

No que prestar atenção

Algumas situações, porém, são mesmo mais esperadas. É preciso avaliar se não há problemas de audição, para dar um exemplo. Isso porque, entre as características físicas do Down, está um conduto auditivo menor, que acumula mais cera, o que eventualmente rende mais complicações de ouvido ao longo dos anos.

Já os músculos costumam ter menos tônus e existe a frouxidão dos ligamentos, típica da condição genética. Isso, quando a pessoa se torna sênior, favorece osteoporose, sarcopenia — a perda de massa muscular — e quedas. Portanto, adaptar a casa para evitar acidentes, entre outras medidas preventivas, é uma boa.

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A musculatura mais flácida na região da garganta, por sua vez, dificulta a passagem do ar, fazendo surgir a apneia obstrutiva do sono, que, você sabe, também se intensifica com o envelhecimento, estraçalhando uma boa noite de repouso e tornando-se um fator de risco para o coração.

"A catarata, em quem tem a trissomia do 21, surge mais precocemente", avisa, ainda, o doutor Altona. Aliás, de modo geral o paciente com síndrome de Down envelhece mais rápido. Apresenta aos 40 anos problemas que os outros manifestam só depois dos 50 ou até mesmo dos 60 anos.

Por isso, a dedução é lógica: os cuidados para preveni-los ou adiá-los devem começar cedo. O conselho vale para todo mundo? Vale. E, para quem tem essa trissomia, dispensá-lo custa caro.

"Um menino, ao sair da infância, deixa de ir ao pediatra e só pisa novamente em um consultório por volta dos 45 anos", observa o doutor. "A mulher já é um pouco diferente, porque faz acompanhamento com o ginecologista. Mas onde quero chegar: um jovem com síndrome de Down não deve ficar uma ou duas décadas sem visitar um médico. Se aparecer no geriatra só com uns 30 ou 35 anos, já terá acumulado problemas capazes de atrapalhar demais sua qualidade de vida ao envelhecer."

Maior risco de Alzheimer

É sabido: ele é frequente em pessoas maduras com síndrome de Down e, nelas, pode dar os seus primeiros sinais por volta da quarta década de vida. Uma explicação é que justamente o cromossomo 21 seria o responsável por codificar proteínas capazes formar as tais placas beta-amiloides, que se acumulam no cérebro de quem tem Alzheimer. "E essas pessoas ainda têm um cromossomo 21 a mais", lembra o doutor Altona.

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No entanto, provavelmente não é apenas o cromossomo extra que está por trás da prevalência aumentada. "Ter uma boa reserva cognitiva é um pré-requisito para afastar qualquer demência", aponta o geriatra, referindo-se às conexões que os neurônios formam quando você aprende algo novo. Elas seriam uma espécie de poupança cerebral.

"Estudos que comparam pessoas analfabetas com indivíduos que frequentaram a escola mostram que o Alzheimer avança mais rápido em quem não sabe ler, justamente por falta de reserva cognitiva", diz o médico. "Seguindo esse raciocínio, é plausível imaginar que essa demência se desenvolva mais depressa em quem tem uma deficiência intelectual, como os pacientes com essa trissomia"

Importante esclarecer que há uma variabilidade intelectual enorme entre eles. "Alguns desenvolvem um intelecto muito acima da média das pessoas com síndrome de Down, aproximando-se de quem não tem essa condição", explica o médico. "Outros, ao contrário, se mostram bem abaixo dessa média e, consequentemente, correm um risco maior de demências ao envelhecerem."

Estimular sempre

Essa, talvez, seja a principal chave para um idoso com síndrome de Down viver bem. "Desde a infância, o indivíduo com essa condição genética precisa de mais estímulos para se desenvolver física e intelectualmente do que crianças sem a trissomia do 21", comenta Marcelo Altona. "Mas no que reparo: no final da adolescência, há um entendimento de que ele já atingiu o seu auge, de que alcançou o seu máximo potencial. Então, os estímulos estacionam. E os cuidados com médicos e outros profissionais de saúde também, até por questões financeiras."

Pesa o fato de que, nessa fase, o jovem sai da escola. — e nem sempre é inserido no mercado de trabalho ou continua convivendo com pessoas diferentes. Ficando mais tempo em casa, sem nenhuma atividade nova para atiçar a sua mente e movimentar o seu corpo, tudo piora. Logo, é preciso redobrar o cuidado de manter diversos estímulos na transição da adolescência para a idade adulta e, depois, na transição do adulto para o idoso.

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O geriatra é o clínico capaz de ajudar nessa segunda etapa. "Ele não precisa ser um expert na trissomia do 21, basta estudá-la um pouco", pensa Marcelo Altona, preocupado em envolver seus colegas e os futuros médicos nesse cuidado. Afinal, esses senhores com a síndrome de Down envelhecem. Com algumas peculiaridades? Sim. Mas quem não as tem?

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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