Por que você deveria fazer exercício se está enfrentando um câncer
Dez ou quinze anos atrás, se alguém perguntasse a Rafael Deminice se uma pessoa com câncer deveria fazer exercício físico, a resposta dele seria um "talvez" ou, quem sabe, um sonoro "não". "A maioria dos médicos indicava o repouso nessa fase, como se o organismo precisasse poupar sua energia para o tratamento", recorda, justificando a hesitação do passado.
Muita coisa, porém, mudou ao longo desse tempo. Durante o 24º Congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, na semana passada, no Rio de Janeiro, ele lançou um guia, assinado pela própria SBOC, com as recomendações para quem quer se exercitar durante e depois de um tratamento oncológico.
Profissional de Educação Física, com doutorado em Ciências Médicas e pós-doutorado na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, ele atualmente é professor e pesquisador da UEL (Universidade Estadual de Londrina), no Paraná, e coordenou o grupo de trabalho por trás desse documento.
Na verdade, o mesmo time e a SBOC já tinham lançado um outro em 2022, que então foi o primeiro a abordar o exercício e o câncer em bom português. Só que esse material anterior focava mais no exercício como estratégia de prevenção ou, vá lá, como uma maneira de reduzir as mortes provocadas pela doença. Desta vez, porém, Deminice e os outros autores vão muito mais fundo no impacto e nos cuidados específicos durante o tratamento.
"Hoje, sabemos que fazer exercício é seguro, efetivo e, vale frisar, super viável para quem está vivendo com um câncer", garante, lembrando que alguns ainda questionam se a pessoa em pleno enfrentamento de um tumor conseguiria treinar e se, mais do que isso, a prática de atividade física seria mesmo uma boa pedida nesse período turbulento.
As respostas que estão no guia não surgiram da noite para o dia. Bem antes de seu lançamento, Deminice e seus colegas cultivaram células cancerosas que eram implantadas em animais, induzindo tumores. Depois disso, testavam diferentes protocolos de exercícios. Também simulavam a quimioterapia para descobrir, observando os bichos, qual seria o melhor volume e a intensidade ideal dos treinos.
Desde 2019, eles começaram a aplicar todo esse conhecimento em pacientes em um projeto da UEL chamado "Correndo contra o Câncer", que combina pesquisa, ensino para capacitar profissionais nessa área e o atendimento de cerca de 60 pacientes que têm ou que tiveram diversos tipos de tumores malignos.
Tomar alguns alguns cuidados
Pergunto se existiriam treinos diferentes conforme o tipo de câncer. "Não exatamente isso", ouço de Deminice. "O que há são cuidados, indicações e contraindicações em situações específicas."
Ele dá um exemplo: "Quem teve câncer de mama e passou por cirurgia, ficando com linfedema, isto é, com um inchaço na região dos membros superiores, deveria treinar usando uma malha de compressão e prestando maior atenção nos movimentos que exijam erguer os braços. Tirando isso, não há qualquer outro impedimento."
Já uma pessoa que apresente metástase óssea não deveria fazer exercícios de contato. "Não é recomendado que ela pratique futebol, basquete ou handebol, entre outras modalidades. Isso porque esbarrar em outro jogador poderá fazê-la cair e esse tombo provavelmente irá causar uma fratura", explica o professor. "No entanto, ao contrário do que muitos imaginam, é bom que ela faça exercícios como a caminhada, a corrida e a musculação, que irão provocar algum impacto nos ossos, favorecendo a sua capacidade de depositar cálcio e melhorando o estado geral do esqueleto."
É claro que o acompanhamento médico é sempre necessário, bem como o de um profissional de Educação Física, quando alguém que está com câncer resolve calçar os tênis e se movimentar. Mas bons motivos não faltam para tomar essa decisão.
A cabeça e a qualidade de vida saem ganhando
"Antes, grande parte dos estudos sobre as vantagens de se exercitar focavam na parte física. A gente já sabe que movimentar-se faz bem para os pulmões, para o coração, para os músculos", repara o professor Rafael Deminice. "No entanto, apesar de os pacientes com câncer melhorarem bastante a função desses órgãos, a magnitude desses benefícios não chega perto do que notamos nos aspectos mentais, sociais e de qualidade de vida."
A força e a capacidade de caminhada de fato aumentaram entre 5% e 7% após seis meses de um programa de exercícios realizado pelos pacientes acompanhados em Londrina. "Já os escores de qualidade de vida ou até mesmo de qualidade do sono simplesmente dobraram nos mesmos seis meses de atividade física", aponta Deminice.
Para ele, a explicação para essa diferença não está relacionada à fisiologia necessariamente. Prova disso é que as evidências são de que quando o exercício é feito em grupo e, mais ainda, em locais abertos, os resultados são ainda melhores.
"As pessoas vão treinar também para se divertirem e, quando isso acontece, melhoram muito", opina a doutora em fisiologia do exercício Paola Cella, também professora e pesquisadora da UEL, que estava acompanhando o congresso da SBOC. "Surge entre elas um sentimento de partilha, com a troca experiências sobre o enfrentamento da doença."
Rafael Deminice conta que pode falar dez vezes para um paciente com câncer fazer exercício e isso ter menos efeito do que ele ver uma única pessoa que passou por esse diagnóstico correndo ou curtindo treinar. "Ter alguém para se inspirar é o que mais aumenta a confiança e, consequentemente, a adesão a um programa de exercício", acredita.
Em relação à dor
Nem toda expectativa é atendida quando se sua a camisa. A sensação dolorosa, seja causada pela doença ou pelo tratamento para combatê-la, é um dos efeitos mais temidos do câncer e o guia mostra que, infelizmente, faltam estudos sobre a capacidade do exercício físico de aliviá-las — se bem que ele pode ter efeito sobre a neuropatia periférica, que surge em quase um terço dos indivíduos que fazem quimioterapia, causando dor, desconforto e dormências pelo corpo.
"Apesar de que a convivência com outras pessoas durante a prática da atividade física e — volto a ressaltar — os momentos de diversão ajudam a melhorar a tolerância a esses sintomas", observa a professora Paola.
Melhora do sono
A estimativa é de que de 30% a 50% das pessoas com câncer acabem dormindo muito mal ou dormindo menos do que a necessidade de repouso do seu organismo. Um combo de fatores atrapalha o descanso, do estresse emocional ao efeito dos medicamentos. A boa notícia é que, de acordo com o guia da SBOC, há estudos mostrando que fazer exercício contribui para resolver as noites mal dormidas.
Boa parte desses trabalhos, porém, analisou o efeito de caminhadas praticadas por mulheres com câncer de mama. Resta saber, dizem os autores do documento, se outras modalidades também afastariam a insônia e se isso valeria para todo tipo de tumor. "É provável que sim", diz o professor Deminice.
Um chega-pra-lá na fadiga
Sentir-se fraco e sem vontade de fazer coisa alguma é algo que acontece com 7 em cada 10 pessoas que têm ou que tiveram um tumor maligno. Aliás, o projeto da UEL aceita tanto pacientes que estão em pleno tratamento quanto aqueles que já passaram por isso e estão apenas em acompanhamento. Em muitos, esse cansaço parece não ter fim, mesmo após o câncer ter sido eliminado.
"Seja como for, a combinação de atividades aeróbicas, dentro da capacidade de cada um, com exercícios de força pelo menos duas vezes por semana já ajuda bastante a afastar a fadiga", diz o professor Deminice. Os estudos não deixam margem à dúvida quanto a isso.
Tocar o dia a dia
"A capacidade de executar tarefas cotidianas, como fazer compras no mercado e preparar a própria comida, está nitidamente relacionada ao aumento da sobrevida", explica, ainda, a professora Paola Cella. "E, quando você trabalha com pacientes que vivem com câncer, às vezes topa com alguém que está com metástase grave. Claro que, nessas condições, será difícil fazer com que o músculo dessa pessoa aumente. No entanto, os treinos são capazes de retardar a perda da função física no dia a dia". Logo, podem fazer o indivíduo viver mais e melhor, mantendo sua autonomia.
Rafael Deminice faz questão de lembrar que a sarcopenia, que é a perda de musculatura, e a caquexia — síndrome mais grave que surge em casos avançados , na qual o indivíduo perde muito peso, sente fadiga extrema e tem a força reduzida — são preditores de uma pior resposta ao tratamento do câncer. "A pessoa muitas vezes não consegue completar um ciclo de quimioterapia e fica mais tempo internada, o que, além de tudo, gera mais custos."
Fazer exercício, no entanto, é um bom caminho para evitar essas condições. Na realidade, são poucos os quadros em que os treinos do paciente com câncer precisam ser cancelados. A febre é um deles. "Mas, em geral, até mesmo quando a pessoa se sente cansada ou com mal-estar depois da químio, não há motivo para proibição", garante Deminice.
Se ela conseguir se movimentar um pouco e vencer o desconforto, o placar muda: a saúde, e não o câncer, é que ganha pontos.
Nota: a colunista viajou para cobrir o SBOC 2023, no Rio de Janeiro, a convite da própria Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
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