Aspirina para evitar coágulos: por que ela já não é indicada sempre
Quando o médico cearense Eduardo Lima ainda era um bebê de quase 1 ano, nascia o caso de amor da Cardiologia com a aspirina: ora, em 1982 começou um grande estudo mostrando que ela reduzia em até 30% as mortes por causa do que os especialistas chamam de infarto com supra.
Infarto com supra é quando, de repente, o fluxo sanguíneo para um pedaço do músculo cardíaco se vê bloqueado — e isso porque surgiu a má surpresa de uma bolota de sangue coagulado bem no seu caminho.
Já faz algum tempo, porém, que esse professor colaborador da USP (Universidade de São Paulo) passou a brincar com os residentes da Faculdade de Medicina: "Olha, gente, a aspirina está recebendo ameaças telefônicas semanais!".
A piada é para reforçar a ideia de que se os cardiologistas, antes, nem pensavam em tirá-la do receituário quando alguém dava entrada no hospital infartando, hoje já a deixam de lado em algumas situações. "E, sem dúvida, aquela história de tomar aspirina por mera precaução, sem nunca ter tido nada, só para 'afinar o sangue', acabou. Esqueça!", avisa Eduardo Lima, que é também líder da Cardiologia do Hospital Nove de Julho, na capital paulista.
Virou consenso que o comprimido só é para ser engolido com uma boa orientação do médico, depois de ele entender muito bem o risco de um paciente formar trombos, ou coágulos, e pesar se ele é maior do que outro perigo — o de sofrer sangramentos que, dentro do crânio, por exemplo, têm potencial para fazer um estrago danado.
Por causa desse balanço delicado entre formar coágulos à toa e sangrar do nada, até mesmo quando alguém é submetido a uma angioplastia e coloca um stent — aquele dispositivo feito uma pequena rede, deixada na artéria coronária para desobstruí-la — e é capaz de formar trombos no peito como uma reação a esse corpo estranho, os cardiologistas entendem que o comprimido branco já tem substituto.
"Antes, parecia absolutamente necessário prescrevê-lo. Por isso, costumo dizer que a aspirina é aquela moça que todo mundo queria tirar para dançar e que, hoje, muitas vezes fica a festa inteira sentada no banco", compara o médico.
Foram justamente as novas estratégias para reduzir os riscos de trombos nas artérias — estratégias que tiraram da aspirina a faixa de rainha do baile — que ele abordou, no último sábado, 25, durante sua apresentação no Simpósio Internacional de Cardiologia Dasa, realizado em São Paulo.
É o fim da aspirina para o coração?
Será que, no futuro, ainda haverá espaço para a aspirina nos consultórios de Cardiologia? "Apesar de ela já não ser a mesma, sempre haverá", acredita Eduardo Lima. "É uma droga eficaz. Tem problemas? Tem, mas costumo dizer gosto dos problemas que eu conheço."
Centenária, de fato seus efeitos colaterais são conhecidos de longa data. Em doses muito altas, pode prejudicar os rins. Em qualquer dose, dependendo da suscetibilidade de cada um, sempre é capaz provocar sangramentos gastrointestinais. E por aí vai.
Por outro lado, é acessível. A mais barata das alternativas mencionadas pelo cardiologista em sua aula, o clopidogrel, que até já perdeu patente, é um anticoagulante que custa de 50 a 60 reais, cinco vezes mais do que a velha cartela cheia de comprimidos de ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina que, para completar, é fornecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
A rede pública só disponibiliza os anticoagulantes que surgiram de uns tempos para cá em situações especiais. "Por exemplo, por um período, logo depois que o paciente coloca um stent no coração", conta o cardiologista.
Os trabalhos que ele apresentou no evento, porém, recomendam o contrário, ou seja, que a aspirina seja uma espécie de coadjuvante combinada com novos remédios — um com o nome pior que outro — e que saia de cena cerca de um mês depois do procedimento. "Ela agora, quando é usada, ocupa um segundo lugar", diz Eduardo Lima.
Talvez você ache que isso é detalhe para os médicos esquentarem a cabeça — se irão dar aspirina ou o coagulante "x" ou "y". Mas guarde a mensagem chave, que deve ser levada para o seu dia a dia: "Os trabalhos mostram que a aspirina não pode ser usada por todos de maneira indiscriminada. Portanto, as pessoas não deveriam sair por aí comprando esse remédio por qualquer motivo", reforça o professor. E há outros recados.
Qual é o problema
Quando um vaso do seu corpo se rompe por qualquer que seja o motivo, as plaquetas — fragmentos de células presentes na circulação — logo são ativadas. Elas dão o pontapé inicial na reação em cadeia que envolve diversas proteínas, os fatores de coagulação, para transformar o sangue, originalmente líquido, em um gel consistente capaz de funcionar como um tampão.
O problema é que essas bolotas de sangue solidificado se formam à toa em outras situações — uma clássica é quando uma placa na coronária se rompe. Pronto! É o estopim do infarto.
A aspirina muitas vezes evita que isso aconteça, agindo diretamente nas tais plaquetas. O número delas não se altera em nada, continuará a igualzinho se você resolver dosá-las em um exame de sangue. Mas não se engane porque, no caso, vale aquela frase de que quantidade não é qualidade. O medicamento torna as plaquetas completamente lerdas. E essa lerdeza não tem volta. Até o tampão do coágulo se formar, é possível que você sangre à beça.
"Para ter uma noção, aquele tempo de cinco a sete dias de suspensão da aspirina antes de alguém fazer um procedimento cirúrgico para evitar sangramentos é o intervalo necessário para o organismo produzir novas plaquetas. Porque aquelas que ficaram sob a ação da aspirina acabaram bloqueadas até a morte. O efeito da medicação é irreversível."
Quando o certo é evitar
Usar aspirina se torna perigoso se, por azar, você precisa ser operado de emergência, se sofre um acidente, se dá uma topada com a cabeça. No entanto, às vezes nem é preciso nada disso. "O que chamei de a maldição do sangramento na minha é inerente ao uso do remédio", me explicou o médico depois. "Pode ocorrer até em quem nunca teve tendência a sangrar."
É quando o sangue brota nas gengivas após a escovação, mesmo sem elas estarem muito inflamadas. Ou quando a pele vive exibindo manchas roxas sem você se lembrar do que teria provocado aquilo. Se corta o dedo, tem de ficar pressionando o machucado por cinco minutos em vez de dois para estancar os pingos vermelhos.
Os exemplos, aqui, são cotidianos. Mas a coisa pode ficar bem mais séria em alguns pacientes, que deveriam passar longe de uma "aspirinazinha". Eduardo Lima lista: "Qualquer pessoa acima de 75 anos, em primeiro lugar. E também quem já teve qualquer sangramento antes — no estômago por exemplo. Ou que o exame de fezes revelou, algum dia, sangue oculto. Finalmente, o uso em quem enfrenta um câncer ou tem doença renal crônica também precisa ser muito bem ponderado."
E, pelo sim, pelo não, os cardiologistas já não recomendam o comprimido se encontram uma placa pequena na tomografia do tórax ou da carótica. Aspirina não é mais para aqueles casos de doença aterosclerótica leve.
Em contrapartida, pode ser bem-vinda se uma artéria já está mais de metade obstruída — aí, é melhor não temer e obedecer o médico. Tirar a aspirina para dançar.
Quem ainda se beneficia
Noutro dia, saiu um artigo no periódico científico JAMA falando que a aspirina aumentava as taxas de hemorragias, inclusive cerebrais. Pra quê! Eduardo Lima e seus colegas começaram a receber mensagens de pacientes cardíacos em pânico, querendo largar a medicação que, no caso, era bem indicada.
"Vai precisar de aspirina, além daquelas pessoas com mais de 50% do vaso obstruído, quem já teve um infarto ou um AVC, sofreu uma amputação de membro ou anda sempre claudicando", exemplifica.
Quem tem mais de um stent no coração provavelmente também necessitará do comprimido. Ora, se um único stent já pode ser uma provocação para o organismo formar coágulos, imagine mais de um!
Finalmente, quem tem diabetes — e, atenção, até mesmo aqueles que controlam sua glicemia com disciplina — pode merecer a prescrição. Em sua aula, Eduardo Lima lembrou que, no diabetes, as plaquetas se tornam hiperreativas. Elas se agregam e formam coágulos com a maior facilidade. E também grudam mais nas paredes dos vasos.
Antes de voar? Nem adianta!
Ou seja, vale continuar dando aspirina, inclusive ao lado dos novos anticoagulantes, se o risco de formar trombos é muito alto. Também é bom analisar que tipo de coágulo a pessoa tem propensão a formar. Porque há trombos e trombos. "As plaquetas, nas quais a aspirina age, são importantes naqueles coágulos que se formam nas artérias, como as do coração", explica Eduardo Lima.
Já os trombos venosos — aqueles que surgem quando o sangue fica quase parado — são bem diferentes dos que aparecem depois que uma placa arterial se rompe. São mais ricos em outras moléculas, fibrinas e fatores de coagulação, nas quais a aspirina mal influencia.
Portanto, se o objetivo é evitar uma trombose venosa ao viajar de avião ou ao passar várias horas viajando de carro, converse com o seu médico, porque nem adianta colocar o comprimido na bolsa de mão. Só se for para dor de cabeça.
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