Procedimento inédito no país corrige defeito na artéria aorta
"Feito uma cebola" — foi a comparação que ouvi do médico Felipe Nasser. Por um instante, soou esquisito. Afinal, ele estava falando um vaso sanguíneo e não é essa a imagem que nenhum de nós tem na cabeça ao pensar em uma artéria, por exemplo. Mas a descrição era precisa.
A cebola, como você sabe, possui várias camadas. A parede dos nossos vasos também — no caso, são três, que normalmente vivem grudadas umas nas outras. "Mas, em algumas condições, elas acabam se descolando", me disse o doutor Nasser, referindo-se ao que, no jargão da Medicina, é chamado de dissecção.
O fluxo sanguíneo, então, em vez de seguir pelo caminho de sempre — pela luz, isto é, pelo espaço bem no centro desse tubo —, se atreve a passar também entre uma camada e outra. Cria, assim, uma rota paralela.
Ao correr entre as camadas e afastá-las — feito lâminas de cebola! —, estas podem dar origem a um septo, palavra do mais legítimo "medicinês". Ou seja, a uma a parede bem no meio do vaso. "De um lado, seria o fluxo sanguíneo verdadeiro. Do outro, o sangue correndo pelo caminho falso", continuou descrevendo o doutor.
É fácil entender que, quando isso acontece, a parede do tal vaso costuma ficar mais fraca — ora, já não tem três camadas juntinhas. Com o tempo, por causa da força da circulação, pode acabar se dilatando feito um balão, formando o famoso (e temido) aneurisma. Mas esse não é um único problema capaz de aparecer em uma situação dessas.
Às vezes, órgãos importantes começam a ser irrigados por ramos de artérias que, feito galhos, saem justamente do caminho falso. "Há casos em que o organismo até dá um jeito de se reequilibrar e, daí, esses órgãos conseguem manter suas funções", diz o doutor Nasser. Só que, infelizmente, nem sempre é assim.
Não foi assim com o paciente que procurou o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, portador de uma doença rara, a síndrome de Marfan, capaz de deixar os vasos sanguíneos nesse estado, "feito cebola" , Não é a única doença que faz isso, diga-se.
"Diabetes e hipertensão grave podem fazer o mesmo", dá mais exemplos o doutor Nasser que, ali no Einstein, coordena o setor de Radiologia Vascular Intervencionista, área pela qual é apaixonado e que troca a antiga cirurgia por procedimentos dentro dos vasos usando diferentes ondas de energia. Mas naquele paciente não seria tão fácil. Nele, o septo não dividia qualquer vaso sanguíneo, mas simplesmente a aorta, a principal artéria do nosso corpo, a de maior calibre e que, portanto, recebe o maior volume de sangue ( ela aparece representada em vermelho, na imagem desta coluna). "Acho que dá para imaginar a gravidade da situação", diz o médico.
A síndrome de Marfan
Essa é uma doença hereditária em que a mutação de um gene provoca uma deficiência de colágeno, proteína que forma muitas das estruturas do organismo.
Sua falta afeta os ossos e, em especial, as articulações. Ora, as cartilagens têm no colágeno sua principal matéria-prima e por isso, na síndrome de Marfan, elas terminam menos rígidas. "Daí que as pessoas com essa doença apresentam uma mobilidade acima do normal e são apontadas como mulheres e homens elásticos", conta o doutor Nasser. "Geralmente, também são muito altas e magras".
O paciente atendido no Einstein, aliás, tem 2,10 metros de altura e um histórico de cirurgias para resolver complicações da síndrome. Mas a queixa, dessa vez, tinha a ver com um septo dividindo a sua aorta por dentro, justo em uma parte de seu trecho mais longo, aquele que atravessa todo o abdômen até a região superior da pelve. Dali, saem ramificações que garantem o aporte de sangue para diversos órgãos.
Onde estava o problema: o fluxo que vinha pelo caminho clandestino é que estava irrigando o seu aparelho digestivo. "Ora, sempre que a gente faz uma refeição, precisa de mais sangue para digerir a comida", explica o doutor Nasser. "Só que, no caso, o aporte de sangue era insuficiente e esse paciente não conseguia se alimentar."
Era necessário fazer algo, óbvio. Para o médico, correr o risco extra de operar parecia fora de cogitação — sim, muita gente ainda opera esses septos de maneira convencional, costurando de volta a camada que se descolou na parede do vaso.
Nasser, porém, resolveu ligar para um amigo, o cirurgião vascular Gustavo S. Oderich, brasileiro reconhecido mundialmente nessa especialidade, que hoje é diretor do Aortic Center na Universidade do Texas, nos Estados Unidos. "Lá, os hospitais, em vez de tratarem todos os problemas, costumam ser referência em doenças específicas. E o centro onde esse colega atua tem uma enorme experiência com esse problema na aorta, assim como ele próprio", justifica.
Ao analisar o caso, o doutor Oderich sugeriu que acabassem com o septo usando um técnica diferente, que nunca tinha sido feita no nosso país — e que, na realidade, só dois centros americanos sabiam realizar, incluindo o dele, no Texas. Tomada a decisão, embarcou para o Brasil para supervisionar o procedimento no Einstein como professor convidado.
O procedimento minimamente invasivo
A técnica sugerida por Oderich destrói o septo sem que haja a necessidade de colocar um novo tubo por dentro da artéria com a anomalia — o que também seria uma alternativa.
Os médicos fizeram apenas dois furinhos no paciente, um em cada lado da virilha, alcançando a femoral, por onde passaram cateteres que subiram até a aorta. Um deles, porém, foi pela luz verdadeira desse vaso. O outro, pela falsa. E ambos foram cortando o tal do septo. Como? "Usando energia térmica. Essa é a maior novidade", responde Nasser. "A técnica usa um cautério, dispositivo que lança mão de energia elétrica para rasgar o tecido."
A sala é equipada para garantir que tudo o que é feito seja mostrado no monitor, de onde os olhos dos médicos não desgrudam. "O procedimento é guiado, em primeiro lugar, por fluoroscopia: eu piso em um pedal e, imediatamente, obtenho imagens contínuas de raio X, vendo tudo em tempo real", conta Nasser. "Ao mesmo tempo, posso realizar uma tomografia e, para completar, sempre fazemos um ultrassom intravascular, que dá a visão de toda a circunferência interna do vaso, deixando eu enxergar perfeitamente o septo."
No final, Nasser e Oderich ainda deixaram dois stents na artéria mesentérica superior, que irriga boa parte do intestino, para melhorar ainda mais o aporte de sangue a esse órgão — stents são aqueles dispositivos que lembram uma pequenina rede metálica, muito usados para desobstruir artérias no coração.
Mesmo com tudo isso, continua sendo um procedimento de risco, é claro. "Apesar de que, graças a todos esses recursos, esse risco é muito inferior ao da cirurgia convencional", garante o doutor Nasser.
O paciente da primeira septomia térmica endovascular realizada no Brasil — é esse o nome correto do procedimento — está passando muito bem. A síndrome de Marfan que ele tem desde o berço, infelizmente, é incurável. Mas ao menos esse problema seríssimo, provocado por ela, foi bem resolvido.
E é até possível que, no Einstein, a mesma técnica seja utilizada, amanhã ou depois, em pacientes nos quais a aorta também apresente a tal da dissecção — o descolamento de lâminas da sua parede —, só que por outros motivos, mais comuns que a síndrome de Marfan, como a hipertensão grave já mencionada. No entanto, é bom deixar claro que ela não é para todos os casos em que isso acontece. Deverá ser cogitada se o septo estiver fechando a entrada dos ramos que irrigam órgãos como fígado, rins ou intestino. Aí, sim, poderá ser uma opção e tanto.
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