Infarto e AVC: mais do que qualquer outra coisa, a inflamação é a culpada
Noutro dia, passarinhos me contaram: logo aconteceria um encontro fechado no Rio de Janeiro, com alguns poucos cardiologistas e mais ninguém, só para discutir as últimas sobre inflamação e doença cardiovascular.
Apostei que iriam falar mais uma vez do estudo SELECT. Seus resultados, afinal, foram alardeados em tudo o quanto é lugar após serem anunciados, em novembro passado, no evento anual da AHA (American Heart Association).
Realizado em 41 países, o SELECT envolveu mais de 17 mil pessoas acima do peso e com doença cardiovascular. E, quando parte delas recebeu uma aplicação diária de semaglutida, notou-se que esse medicamento usado para tratar a obesidade conseguia reduzir em 20% a ocorrência de infarto, AVC e as mortes por qualquer um desses problemas.
Era isso, pensei, achando que sabia de tudo. Mas, não — insistiam os passarinhos, piando em meus ouvidos —, não era nada disso. Era algo diferente. Um novo remédio, outros estudos. E, sobretudo, uma visão de que, no fundo, não seriam o colesterol lá no alto, o diabetes, os quilos a mais, a hipertensão, o cigarro nem o sendentarismo os maiores responsáveis por manter as doenças cardiovasculares firmes e fortes no posto de principais causas de mortes em todo o mundo — embora tudo isso, claro, também tenha culpa no cartório. Mas a maior acusada seria mesmo a inflamação.
Proteína C reativa
Contei essa história ao professor José Francisco Saraiva, o titular da Cardiologia na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Campinas, no interior paulista, assim que fiquei diante dele.
Explico. Procurei a Novo Nordisk, empresa farmacêutica que desenvolveu a semaglutida e que estava organizando o tal encontro de médicos no Rio. Ora, eu queria descobrir do que se tratava. Não me adiantaram nada — e, cá entre nós, já nem estava segura se haveria algo realmente novo. Mas me sugeriram a entrevista com o professor.
"Fico feliz porque você pensou no SELECT, mas preciso dizer que não sabe tudo sobre ele", me assegurou o cardiologista, que também foi o líder desse estudo no Brasil."É claro que ele provou a importância da obesidade na saúde cardiovascular e que um tratamento para diminuir o peso era capaz de melhorá-la. No entanto, um dos principais achados, que explica boa parte dos resultados, é que, mais do que fazer o ponteiro da balança baixar, o medicamento reduz de maneira significativa a taxa de inflamação do organismo. E sabemos disso avaliando a proteína C reativa."
A molécula de proteína C reativa, em si, não faz mal algum às nossas artérias. Mas, como compararia o professor Saraiva, seria feito um termômetro ao apontar se temos febre — no caso, ela mostra a quantas anda o nosso estado inflamatório.
No congresso do American College of Cardiology deste ano, por exemplo, foram apresentados três estudos que, juntos, somavam cerca de 20 mil pacientes usuários de estatinas para baixar o colesterol. E o que se viu: mesmo quando seus níveis diminuíam um bocado, se a proteína C reativa continuasse elevada, o tratamento mal fazia diferença na prevalência de mortes por doença cardiovascular.
"Em outras palavras, você pode ter um LDL, o colesterol ruim, abaixo de 70 miligramas por decilitro de sangue", diz o professor. "Se a sua proteína C reativa também estiver baixa, seu risco de morrer do coração ou de AVC será igualmente baixo. Mas, se ela estiver alta, mesmo com o colesterol controlado, o risco de mortalidade irá disparar."
Deixada de lado
"Cá entre nós, esse tema nem é novo. A Cardiologia conhece influência da inflamação há décadas. Mas, diferentemente de outros fatores de risco tradicionais, como o diabetes e a hipertensão arterial, a inflamação vinha sendo deixada de lado.", comenta o médico.
No próprio congresso da AHA, recém-realizado na Filadélfia, ele chegou a apresentar o pôster de um trabalho em que perguntaram para cardiologistas experientes do mundo inteiro qual seria a percepção deles sobre a inflamação. "A maioria reconheceu que ela era um fator de risco importante, mas muitos não consideravam dosar a proteína C reativa dos pacientes", conta. "E por quê? A resposta foi que não teriam muito o que fazer e que, portanto, era melhor que se concentrassem no resto."
Bem, isso talvez mude. Finalmente, soube o que o seleto grupo de cardiologistas discutiu no Rio de Janeiro.
Barrar a inflamação
A inflamação é resultado de um processo em cascata. — uma molécula inflamatória aciona outra. Há cerca de dez anos, um estudo internacional, do qual o professor Saraiva também participou, avaliou um medicamento biológico de outro laboratório que tinha sido criado para tratar formas raras de artrite e demonstrou que, por tabela, ele era capaz de reduzir eventos cardiovasculares. Como? Ao inibir a interleucina 1, uma peça importante no dominó da inflamação.
Essa droga, no final, só foi aprovada para casos excepcionais de artrite severa. Isso porque custa absurdos 100 mil dólares ao ano. Não avançou nas promessas feitas para o coração Mas a experiência serviu para cientistas questionarem o seguinte: se o bloqueio da interleucina 1 funcionou, o que aconteceria se fizessem isso com outra interleucina, a 6?
"A interleucina 6 é muito mais específica do que a 1, que atua, digamos, nas inflamações em geral. Ela já está bem mais relacionada à inflamação por trás da aterosclerose, do infarto e da insuficiência cardíaca", ensina o professor.
Por isso, os pesquisadores da Novo Nordisk desenharam um outro medicamento biológico, o ziltivekimabe. E, agora mesmo, estão sendo realizados três estudos para confirmar o seu potencial para evitar infartos e AVCs ao interromper a cascata inflamatória. O professor Saraiva é o coordenador nacional de dois deles. Cada um foi batizado com o nome de um deus grego.
Os três "deuses"
ZEUS é, no momento, o estudo mais adiantado de todos. Ele avalia se o ziltivekimabe protege as artérias de quem tem doença renal crônica. "O que mais mata esses pacientes pacientes não são os rins, mas a doença cardiovascular. E o que notamos neles é uma tremenda elevação da interleucina 6", justifica o professor Saraiva. Para participar, a pessoa precisa ter, além do problema renal, aterosclerose e proteína C reativa alta.
O outro deus é Hermes, que denomina um estudo em que o medicamento biológico está sendo testado em um tipo cada vez mais comum de insuficiência cardíaca, a de fração de ejeção preservada, no linguajar dos cardiologistas. Nela, o coração bombeia mal o sangue porque porque, apesar de se contrair normalmente, não consegue relaxar direito.
"Esse problema é a bola da vez por ser frequente em idosos e, afinal, a população mundial está envelhecendo", observa Saraiva. "E, não é de hoje, pesquisas mostram que, se o paciente com essa insuficiência tem uma interleucina 6 baixa, isso indica um bom prognóstico". Já se a molécula inflamatória está nas alturas, a história é outra.
É Artemis a deusa que batiza a terceira e última investigação, que foca o efeito da nova medicação em pacientes que infartaram. "Ora, se existe um momento em que a inflamação fica exuberante e no qual a proteína C reativa parece explodir é o de um infarto", diz o cardiologista.
O que todos precisam saber
A matemática exposta pelo professor escancara a realidade: "Se você tem diabetes, pressão alta, colesterol elevado ou, ainda, se fuma e simplesmente não faz nada no sentido de se tratar, o seu risco de morrer por causa de uma doença cardiovascular gira em torno de 30%. No entanto, se controla todas essas condições com esforço, consegue reduzir essa ameaça em apenas 20%. Ela, infelizmente, continuará alta, porque há o que chamamos de risco residual."
O trio de estudos, mais do que ver quanta diferença o inibidor da interleucina 6 poderá fazer, servirá para confirmar que o que está por trás do tal risco residual é mesmo a inflamação.
E o que podemos fazer? "Controlar o peso é um passo importante", informa o cardiologista. "A obesidade inflama, por causa do acúmulo de gordura visceral." Tratar condições como o diabetes e a hipertensão também é vital — elas são agravadas pela inflamação e, ao mesmo tempo, podem piorá-la, em um caminho de mão dupla.
Ganham destaque a dieta equilibrada, que tira do prato os alimentos ultraprocessados, o excesso de gordura e de açúcar — o tipo de cardápio que nos inflama — e a prática rotineira de atividade física que, no sentido oposto, é anti-inflamatória por natureza. Ainda que venha o novo remédio amanhã ou depois, para desinflamar, você sempre terá de rever o estilo de vida.
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