Lúcia Helena

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Reportagem

O que você precisa saber sobre lipedema para não acreditar em qualquer um

Noutro dia, estiquei as orelhas e ouvi uma conversa entre médicos: "Hoje, todo mundo tem lipedema", ironizou um deles. "E todo mundo é especialista em lipedema", retrucou o outro. Dá para entender um pouco de onde vem o ranço.

De um lado da mesa de certos consultórios, tem muito picareta chamando qualquer acúmulo de gordura localizada nos joelhos ou no culote de lipedema. Do outro lado, a paciente ou acredita ou, o que é lamentável, repassa o suposto diagnóstico adiante para ser parcialmente reembolsada das despesas de uma cirurgia puramente estética.

Às vezes, a mulher tem de fato lipedema, o crescimento desproporcional de uma gordura um tanto diferente nas pernas ou, mais raro, nos braços. Então, começa a consumir uma penca de remédios que não reduzirá 1 milímetro o seu problema. Bem pior é quando cai em golpes que, além de ineficazes no seu caso, são potencialmente fatais, como usar os proibidíssimos "chips" de beleza.

E há, por fim, aquelas que, quando se queixam, ouvem que é celulite, inchaço, obesidade ou que deveriam se conformar porque têm as pernas "grossas" das mulheres da família — bem, pode ser que mãe, tias, primas e avós compartilhem essa doença de fundo genético. Sim, uma doença progressiva e capaz de causar dores físicas torturantes. E emocionais também.

Oficialmente, uma doença

Lipedema não é uma invenção, tampouco modismo recente. Essa condição foi descrita pela primeira vez em 1940 por médicos da Clínica Mayo, nos Estados Unidos. Chamou a atenção deles que algumas mulheres tinham o corpo fino, mas muita gordura nos membros inferiores — um terço delas, nos braços, mas nunca nos antebraços. Os depósitos gordurosos eram simétricos, iguais nos lados esquerdo e direito. E pareciam especialmente inflamados.

Mas levou mais de 80 anos para isso ser reconhecido como uma patologia. Só em 2022 a OMS (Organização Mundial de Saúde) incluiu o lipedema na CID (Classificação Internacional de Doenças), em que mais 50 mil condições têm um código só seu para que médicos de cantos diferentes do globo saibam quando estão falando da mesma coisa.

Quase só acomete mulheres

"É raríssimo encontrar um homem com lipedema e, quando acontece, ele tem níveis baixos de testosterona em função, por exemplo, de um tratamento para câncer de próstata", conta o endocrinologista Cristiano Grimaldi Barcellos, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que, em dezembro, deu uma aula sobre o assunto no OLHAR Abeso, evento da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica.

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Em torno de 10% da população feminina do mundo têm lipedema. No Brasil, são pelo menos 5 milhões de pacientes. E quase metade apresenta obesidade, o que gera confusão.

É bem diferente

"A pessoa com obesidade tem um aumento de tecido adiposo por todo o corpo. Acumula principalmente gordura na barriga, aquela que chamamos de visceral, que fica impregnada em órgãos como fígado, rins, pâncreas... E esse tipo está envolvido com doenças cardiovasculares, uma relação que já não vemos no lipedema", compara o professor Barcellos.

Pudera: no lipedema a gordura é subcutânea e esta não eleva o risco cardiovascular. Quando ela cresce de maneira descomunal só nas nádegas e no quadril, os médicos dizem que é o tipo 1 da doença. No tipo 2, o acúmulo é apenas nos joelhos e nas coxas. No tipo 3, ele se estende até as panturrilhas. O tipo 4 é o dos braços. E o 5 é aquele em que a gordura aumenta demais só na área abaixo dos joelhos.

Mas não importa onde está: é uma gordura dolorosamente inflamada. "Já vi paciente com lipedema no braço que tinha vontade de chorar enquanto eu media a sua pressão", relata Cristiano Barcellos. "E, ora, obesidade não dói. Aliás, se a mulher emagrece — mesmo perdendo vários quilos após uma bariátrica ou usando remédios antiobesidade —, o corpo inteiro afina, menos a região com lipedema, que continua igual." Ou seja, é uma gordura que chega e parece não ir mais embora.

Outra diferença: o lipedema está associado ao aparecimento de vasinhos. Frágeis, eles estouram com facilidade. A mulher vive com manchas roxas, que parecem surgir do nada.

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Para completar, em cerca de um terço das pacientes nota-se uma hiperflexbilidade, aumentando o risco de torções. Isso porque seu organismo produz mais substâncias como proteoglicanas e glicosaminoglicanas, que formam uma geleia no tecido conjuntivo das articulações.

Por que acontece

Por ser uma doença quase exclusiva de mulheres, faz sentido deduzir que os hormônios femininos desempenham um papel na história. Mas não é uma simples questão de ter concentrações maiores estrogênio circulando. "Se fosse assim, o lipedema melhoraria na menopausa, quando seus níveis caem", raciocina o professor Barcellos. E ele não melhora. Às vezes, até piora.

"O que se sabe é que a doença aparece ou progride quando ocorrem variações hormonais significativas, para mais ou para menos", diz o endocrinologista. Daí que, em boa parte dos casos, o lipedema é uma má surpresa na puberdade, quando o estrógeno se eleva no sangue. Mas também pode acometer gestantes, mulheres que fazem tratamento hormonal para engravidar ou que entraram na menopausa.

A suspeita de alguns estudiosos é que receptores do estrógeno estejam por trás. "Há dois tipos, o alfa e o beta e, quando a mulher tem lipedema, o primeiro está aumentado no tecido adiposo", conta o professor Barcellos. "Ele é que faz a célula de gordura hipertrofiar, ficando com um volume até três vezes maior em comparação com a de uma mulher sem lipedema."

Se o problema progride

"Imagine uma adolescente que, além da insatisfação com o corpo, começa a sentir dores e peso nas pernas. E tudo isso se agrava quando, anos adiante, ela engravida e se intensifica ainda mais em uma segunda gestação, já que a flutuação dos hormônios é um gatilho", observa o cirurgião plástico Fábio Kamamoto, do Instituto Lipedema Brasil. A cada fase dessas, o lipedema pode avançar um ou mais estágios.

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No primeiro deles, ao passar a mão na área acometida, a sensação é a de haver grãos de arroz sob a pele — "como se fosse um bombom crocrante", descreve Cristiano Barcellos. Ah, sim, não há exame para cravar o diagnóstico. Ele é clínico.

No segundo estágio, notam-se nódulos, feito coroços duros. "Na medida em que o tecido adiposo inflama, surgem cicatrizes e, então, é como se a gordura crescesse dentro de caixinhas de fibrose", explica o doutor Kamamoto.

No terceiro estágio, há deformações, inclusive na pele. No quarto e último, a doença afeta os vasos linfáticos. Então, os especialistas falam em lipolinfedema,

Um inchaço diferente

Não confunda esse último estágio com linfedema, problema em que o inchaço provocado pelo mau funcionamento dos vasos linfáticos acontece em uma perna só ou, vá lá, mais de um lado do que de outro, deixando o pé feito um pãozinho redondo de tanta retenção de líquido.

Aqui é diferente: o inchaço acontece simetricamente nas duas pernas, mas os pés nunca se alteram. "Ficam do mesmo tamanho, usando o número de sapato de antes", conta Cristiano Barcellos.

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Mudança de estilo de vida

Grave bem: não há remédio para o lipedema. "Quem fala diferente disso está tirando proveito da vulnerabilidade da paciente, que muitas vezes desenvolve depressão, transtornos alimentares e ansiedade", afirma Fábio Kamamoto.

No estágio mais grave, quando os vasos linfáticos são acometidos, algumas mulheres relatam melhora com o uso de meias de compressão e drenagem linfática. Antes disso, massagens não fazem efeito. O que ajuda é mudar o estilo de vida.

"A dieta capaz de aliviar os sintomas e diminuir a probabilidade de progressão do lipedema, mais do que focada no emagrecimento, precisa ser anti-inflamatória, com porções reduzidas de açúcar, álcool, farinha branca e frituras. E, de preferência, sem alimentos ultraprocessados", afirma o cirurgião plástico que, há doze anos, se dedica a essa doença.

A atividade física faz parte da receita. "No entanto, dependendo do grau da doença, os exercícios terão de ser de baixo impacto", diz o especialista. E justifica: "A gordura desproporcional nas coxas, por exemplo, provoca desvios nos joelhos. Na verdade, quem tem lipedema nas pernas costuma apresentar problemas ortopédicos."

O tratamento cirúrgico

Entenda de uma vez por todas: apesar de, na operação para tratar lipedema, as células de gordura serem aspiradas, não se trata de uma lipoaspiração banal, como aquela para eliminar um pneu na cintura. Quem faz essa promessa está ludibriando.

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"É sempre uma cirurgia de grande porte", alerta o doutor Kamamoto. "E precisa ser realizada por profissionais treinados em lipedema para que saibam retirar um tecido adiposo cheio de fibroses, perto de veias, nervos e vasos linfáticos."

O limite é sugar o equivalente a 8% do peso da paciente. "Logo, em uma mulher de 70 quilos, eu só poderei aspirar 5,6 litros de gordura", exemplifica o cirurgião."Se ela tiver 10 litros para serem retirados, melhor dividir em duas cirurgias."

Segundo o consenso americano sobre lipedema, só a cirurgia consegue resolver vez a situação. E, ainda assim, a mudança de estilo de vida continuará necessária. Outras saídas, aparentemente mais fáceis, são enganações perigosas.

Reportagem

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