Tecnologia evita sequelas cerebrais em bebês que ficaram sem oxigênio
Diversas situações são capazes de fazer uma criança enfrentar falta de oxigenação um pouco antes de vir ao mundo, durante o parto ou logo depois de nascer — drama que os médicos chamam de asfixia perinatal. De problemas com a saúde da mãe, como uma hipertensão gestacional descontrolada, a descolamento de placenta, alterações no cordão umbilical, prematuridade... A lista é longa, dando a impressão de que, para uns, viver é perigoso desde o primeiro sopro.
É claro que um pré-natal bem feito e uma assistência adequada na maternidade diminuem essa ameaça. No entanto, mesmo com tudo bem cuidado e aparentemente sob controle, às vezes essa asfixia acontece. "Então, em vez de ir para o colo dos pais, o bebê fica nas mãos da equipe de cuidados intensivos e ela precisa agir rápido", avisa o pediatra neonatologista Gabriel Variane.
Isso porque, se todas as células do corpo sofrem quando falta oxigênio, as do cérebro parecem se ressentir mais depressa. Com o corte no abastecimento desse gás vital, seus neurônios podem ficar lesionados de cara. Para piorar, reagem mal, como se a asfixia fosse um insulto. Aliás, os especialistas até usam o termo "cérebro insultado". Diante de uma agressão aguda — seja uma pancada na testa, seja a falha na oxigenação —, ele às vezes convulsiona. Isto é, sua atividade elétrica fica totalmente destrambelhada.
Se a crise convulsiva ocorre de maneira isolada, menos mal. "Mas o cérebro de um recém-nascido em uma situação dessas pode ter uma convulsão atrás de outra durante seis, doze, 24 horas", relata o doutor Variane. Não há cabeça que aguente, muito menos a de uma criaturinha no berço. "Isso provoca danos adicionais, aumentando o risco de sequelas neurológicas permanentes."
É que, durante a crise, a demanda metabólica dos neurônios fica enorme. E, com ela lá nas alturas e oxigênio lá embaixo, essas células nervosas entram em parafuso. Até que sucumbem.
Você pode imaginar — como eu mesma imaginei — que, com uma equipe especializada a postos, bastaria dar um anticonvulsivo ao pequeno. O nome do medicamento já descreve o que ele faz: diminui o número, a intensidade e a duração das crises convulsivas. Mas aqui temos dois problemas.
Sem dar pista
O primeiro deles, ao qual Variane se sensibilizou lá pelo ano de 2015, é que não existe UTI neurológica para recém-nascidos em todo canto, com equipe treinada e os equipamentos necessários. E, para complicar um bocado mais, não dá para o médico bater os olhos no bebê e afirmar que ele não está tendo uma convulsão naquele instante. Enquanto os neurônios sofrem curto-circuitos, o recém-nascido pode aparentar estar de boa, sem piscar os olhos, nem mexer um único dedo.
"Por outro lado, quando crianças muito pequenas estão doentes, elas fazem movimentos inespecíficos que as pessoas confundem com crise convulsiva", conta o neonatologista. Desse modo, os médicos às vezes prescrevem anticonvulsivos para quem não precisa, o que tampouco faz bem.
"A única saída para acabar com essa confusão e flagrar crises convulsivas imperceptíveis a tempo de evitar maiores danos é monitorar esses bebês com diversas tecnologias, 24 horas por dia, sete dias por semana", diz Variane. Pensando nisso, ao lado do também neonatologista Alexandre Netto, ele criou a PBSF (sigla do inglês para "protegendo cérebros e salvando futuros"), que já implantou uma estratégia de saúde digital em 45 hospitais dentro e fora do Brasil para reduzir as sequelas neurológicas em recém-nascidos de alto risco.
A organização, surgida em 2016, hoje tem cinco projetos internacionais, com parceiros como a Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e o Imperial College London, na Inglaterra. No mês passado, ela foi uma das vencedoras do Prêmio Veja Saúde Oncoclínicas de Inovação Médica.
O tamanho do problema
A asfixia perinatal é a terceira principal causa de mortes de bebês. E, mesmo quando os pequenos sobrevivem, entre 35% e 40% terão convulsões, capazes de levar a prejuízos neuromotores, déficit cognitivo, cegueira, surdez e paralisia cerebral. É o que acontece com 20 mil bebês brasileiros a cada ano. Nesse mesmo período, no mundo inteiro, mais de 1 milhão de crianças que tiveram problemas ao nascer evoluem para sequelas.
As complicações têm um impacto brutal no coração das famílias — e no bolso. O CDC (Centers for Disease Control and Prevention) calcula que o custo anual dos cuidados dedicados a essas crianças gira em torno de 67 bilhões de dólares nos Estados Unidos.
Monitorar à distância
Na PBSF, uma central de especialistas funciona ininterruptamente. Ela conta com 20 neonatologistas, além de neurologistas, enfermeiros e técnicos de enfermagem, entre outros, que conseguem ficar de olho em um bebê que talvez esteja a centenas ou a milhares de quilômetros de distância. À beira do leito, o médico na UTI usa óculos de realidade virtual. "Por favor, pense neles com um computador de vestir", corrige Variane.
O equipamento projeta hologramas no espaço virtual, com todas as informações sobre o pequeno paciente e as orientações dos especialistas em tempo real. "Como é possível conectar esses óculos à internet, sou capaz de ver o bebê na central como se estivesse ao seu lado na UTI", ele garante.
O doutor Alexandre Netto, vice-presidente da PBSF, complementa: "Nós treinamos a equipe local e fornecemos, emprestados, todos os equipamentos, como aquele que mede a oxigenação cerebral por meio de raios infravermelho".
A meta ambiciosa é uniformizar o atendimento para que ele se torne igualmente excelente em um hospital privado paulistano de classe média atendido por eles e um hospital público na cidadezinha no Norte do país. "Já foi necessário levar até mesmo internet para alguns lugares", lembra Alexandre Netto.
Para proteger o cérebro
Uma das estratégias dos médicos é a hipotermia: baixar a temperatura corporal do bebê até ela alcançar 33,5 graus Celsius e deixá-lo assim por 72 horas. "Estudos comprovam que isso, quando é feito sem perda de tempo, reduz o risco tanto de morte quanto de sequelas neurológicas graves, ao diminuir a inflamação dos neurônios que ficaram sem oxigênio", explica o doutor Variane.
Além disso, é feito um videoeletroencefalograma contínuo. "Desse modo, é possível ver, instante a instante, como estão as ondas cerebrais", diz ele. "Agora, após mais de 600 mil horas de atuação e perto de 10 mil bebês atendidos, temos um banco de dados robusto. Ele está nos ajudando a criar algoritmos para, com a IA, isto é, a inteligência artificial, fazer um diagnóstico ainda mais ágil e preciso", conta.
Foi a IA, por exemplo, que salvou a vida de um bebê que, mesmo submetido àquele resfriamento do corpo, passou a convulsionar sete horas depois. "Só que tudo estava aparentemente normal: a pressão, a oximetria, a frequência cardíaca. Olhando pelos monitores, eu diria que havia 95% de chance de ele não ter lesão", relembra Variane.
A inteligência artificial, porém, flagrou um padrão sutilmente diferente em uma das linhas do eletroencefalograma — e sou o alarme. Como, pelos monitores, tudo estava bem, os médicos começaram a fuçar até que encontraram um tamponamento no coração. Isso quer dizer que havia um acúmulo de líquido entre o músculo cardíaco e a capa que o reveste, o pericárdio.
"Esse líquido criava uma compressão que dificultava o bombeamento do sangue oxigenado. Quando é assim, o certo é enfiar uma agulha para aspirá-lo. Mas, geralmente, só percebemos esse líquido depois de uma parada cardíaca ou até de morte", explica o neonatologista. A IA, porém, avisou bem antes, Em uns 60 minutos, tudo estava resolvido e, dez dias depois, o bebê já estava em casa.
Redução da internação
Em média, o tempo que bebês que tiveram asfixia ficam internados reduziu de 49 para 13 dias, segundo o levantamento feito em um hospital em Goiás que conta com esse suporte de saúde digital. "É um sinal de sucesso", explica Variane. "Se há lesões no cérebro, a criança tem dificuldade para sugar o leite e, como não consegue se alimentar, passa mais tempo hospitalizada. Se ela está saindo mais cedo, entendemos que estão sendo evitados danos cerebrais."
Sim, eles estão sendo prevenidos, principalmente naqueles casos em que o olhar médico não bastaria: dois em cada dez bebês em UTIs neonatais acompanhados pela PBSF convulsionaram. Na maioria, ou 80%, a convulsão era daquelas que poderiam passar perigosamente invisíveis até danificarem o cérebro — e o futuro dessa criançada.
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