Para o coração, nem fazer ginástica compensa o refrigerante que você toma
Bastou eu dar um golinho no estudo realizado por pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ao lado de cientistas da Universidade Laval, no Canadá, para ele me chamar a atenção.
Imagine você que os autores se debruçaram sobre dados de uma montanha de gente. Precisamente, 65.730 mulheres que foram acompanhadas de 1980 a 2016, quando participaram de outro estudo americano famoso, avaliando a saúde de enfermeiras.
Elas, no início dessa história, tinham entre 30 e 55 anos e não apresentavam nenhum problema médico, esbanjando disposição. De tempos em tempos, tinham de preencher um questionário extenso sobre seu estilo de vida, seus exames e, enfim, como andavam se sentindo. Cada detalhe ficou registrado.
Também foram incluídos no trabalho atual informações de 39.148 homens . Todos eles eram profissionais de saúde que faziam parte de outra investigação na mesma linha daquela das enfermeiras. Acompanhados a partir de 1986, esses voluntários eram igualmente saudáveis no início, quando maioria tinha 40 e poucos anos.
Pois bem, nessa turma toda, somando homens e mulheres, 13.269 pessoas tiveram doença cardiovascular em algum momento — 8.438 infartaram e 4.997 foram surpreendidos por um AVC (acidente vascular cerebral).
Como os dados levantados nos questionários desses dois estudos ainda rendem pano para manga, no artigo recém-publicado no American Journal of Clinical Nutrition, foram feitas duas perguntas importantes: será que o consumo regular de bebidas industrializadas açucaradas, como os refrigerantes, daria um empurrãozinho para alguém ter um piripaque cardiovascular? E mais: será que a prática de atividade compensaria o hábito de tomar esse tipo de bebida, protegendo o coração?
A primeira resposta é um sonoro "sim". Sim, bebidas industrializadas açucaradas, como refrigerantes — além de refrescos, sucos e chás de caixinha e que tais —, parecem prejudicar a saúde do seu coração.
Já a segunda resposta é um taxativo "não". Ou seja, não existe aquele papo do "'tá pago" depois de suar na academia ou no parque.
O que o estudo mostra
Os pesquisadores compararam pessoas que tomavam dois ou mais copos por dia de refrigerante ou outra bebida ultraprocessada cheia de açúcar e pessoas que nunca matavam a sede com esse tipo de produto ou que só bebiam algo assim raramente. Entre os consumidores de bebidas industrializadas açucaradas, a partir da segunda porção o risco de desenvolver doença cardiovascular já era 21% maior.
Bom abrir parênteses para evitar uma má interpretação: ninguém está dizendo que, ao pedir aquela bebida gaseificada repleta de açúcar em um copo com gelo e, quem sabe, limão, você tem 21% de probabilidade de ter um problema cardíaco, mas que o seu risco pessoal e intransferível conforme uma série de fatores — de histórico familiar a outros hábitos — cresce esse tanto. Melhor ficar só com o gelo e o limão.
Os cientistas também compararam quem tinha o hábito de tomar refrigerante "zero" e outras bebidas com adoçantes artificiais com quem preferia água e suco natural sempre. De novo, o risco de ter doença cardiovascular aumentava, mas bem menos em relação ao hábito de ingerir a versão açucarada: só uns 3%.
Especialmente nas bebidas industrializadas com açúcar adicionado, o que se notou é que cada lata ou copo a mais no dia a dia elevava linearmente o risco, como se a ameaça de um problema no peito ou nos vasos da cabeça subisse lado a lado com os goles extras.
E a atividade física? Nessa jogada, ela não fez diferença. A probabilidade de infartar ou de ter um AVC continuou praticamente a mesma entre bebedores de refrigerantes convencionais que faziam mais de 7,5 horas de atividade física por semana e os que se mexiam menos do que isso.
A conclusão do trabalho é clara: pelo bem do coração, cortar esse tipo de bebida seria algo muito desejável até para quem é fisicamente ativo.
Redução no consumo
Tanto nos Estados Unidos quanto aqui, no Brasil, o consumo de refrigerantes apresenta uma tendência ao declínio. "Não é de hoje que se aponta uma associação entre o hábito de bebê-los e uma infinidade de doenças crônicas, como obesidade, diabetes e os próprios males cardiovasculares. Isso já aparece em diversas diretrizes. Daí que as pessoas vêm entendendo que o refrigerante é uma escolha a ser evitada", pensa a nutricionista Maria Laura da Costa Louzada, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), onde também é pesquisadora do NUPENS ( Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde).
A tendência à redução do consumo salta aos olhos no Vigitel, que é o inquérito anual do Ministério da Saúde, realizado desde 2006 para avaliar fatores de risco de doenças crônicas do estilo de vida na população brasileira.
"Interessante que não se trata de uma substituição do refrigerante convencional por aquele com adoçante. É uma queda geral no consumo desse tipo de bebida", observa a professora. Isso porque, por volta de 2015, vieram à tona evidências robustas de que a ingestão excessiva de açúcar nos fazia mal. E muita gente — inclusive a indústria — ficou com a ideia de que substitui-lo por adoçante artificial resolveria todos os problemas. "Mas não é tão simples assim", afirma Maria Laura.
De todo modo, apesar de a gente ter motivos para celebrar que o consumo dessas bebidas caiu pela metade, ele continua alto: "Quase 15% dos adultos brasileiros ainda as bebem regularmente", conta a nutricionista.
No entanto, como o Vigitel só faz entrevistas nas capitais do país e por telefone, ele tem lá suas limitações em relação ao perfil de participantes. Por isso, a professora Maria Laura e seus colegas estão finalizando um outro estudo, que está para ser publicado. "Nele, a gente avalia se, de fato, o consumo está caindo dentro da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares)", diz.
A vantagem é que ela engloba adolescentes a partir dos 10 anos de idade, de todas as regiões do Brasil, tanto urbanas quanto rurais, desde cidades pequenas até metrópoles. "E a gente confirma essa tendência a consumir menos refrigerantes de 2010 para cá, em todos os grupos, de todos os cantos, homens e mulheres", antecipa Maria Laura.
Trocando ultraprocessados por mais ultraprocessados
Porém, ao olhar para o consumo de ultraprocessados como um todo, a nova pesquisa não revela uma diminuição. "Ao contrário, há uma subida e ela é mais intensa entre as pessoas economicamente mais vulneráveis, pretas e pardas, indígenas, com baixa escolaridade, na zona rural", lamenta informar a professora.
Ou seja, os refrigerantes perdem espaço, mas provavelmente as pessoas caíram no conto de que o suco industrializado é super saudável, de que aquele design diferente de caixinha indica que o produto é "simples", de que bebida energética é coisa de quem faz parte do mundo fitness, de que opções com proteínas extras não seriam exemplos bem acabados de ultraprocessado e assim por diante.
Embora não se possa afirmar pelo estudo que esteja acontecendo essa troca sempre — até porque muitos desses produtos são caros demais para o bolso de uma parcela da sociedade —, essa é uma hipótese plausível para explicar um pouco esse cenário em que os refrigerantes estão em queda e, ainda assim, os ultraprocessados se mantêm em alta.
Mudanças enganadoras
"Como exibir no rótulo que determinada bebida industrializada tem muito açúcar virou uma coisa ruim, há claramente uma alteração nas fórmulas", repara a Maria Laura. "Muitas, agora, passam a ter dois ou três adoçantes com funções tecnológicas diferentes e nomes esquisitíssimos para cortar a proporção de açúcar na formulação."
Essa estratégia até reduz calorias e serve para retirar a informação sobre o excesso de açúcar das embalagens. "Mas realidade é que as bebidas estão ficando com fórmulas cada vez mais estranhas", alerta a nutricionista.
Os estudos com esses aditivos usam como parâmetro a toxicidade. Mas, antes de chegar ao ponto de serem venenosos, ninguém sabe se não vão, aos poucos, contribuindo para a escalada das doenças crônicas.
O que acho ainda mais esdrúxulo é que algumas pessoas questionam vacinas alegando — equivocadamente — que não foram estudadas. Mas não querem saber o que estão engolindo quando sentem sede.
Padrão alimentar
Ele é o que mais conta. "Não é o refrigerante de maneira isolada que faz mal ao coração, mas o conjunto de tudo o que você ingere no dia a dia", explica a professora Maria Laura. Se bem que costuma haver uma coerência, como ela mesma observa. Dificilmente quem cozinha arroz, feijão, prepara uma salada e come fruta de sobremesa enche o copo de refrigerante todos os dias. De vez em quando, bem, pode ser outra história. É principalmente o hábito que pode fazer o monge — ou, no caso, o infartado.
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