E se o exame de sangue pudesse prever quem terá leucemia mieloide aguda?
Existem pessoas que vivem por cinco, dez, vinte anos com uma neoplasia indolente no sangue, descoberta sem querer no hemograma ou por causa de um sintoma mais esquisito. Em bom português, elas têm um câncer que parece estar com preguiça de avançar. Há, na verdade, alguns tipos de câncer hematológicos assim, um com o nome mais complicado que outro.
Ninguém sabe direito como eles surgem lá na célula que acaba dando origem aos glóbulos sanguíneos brancos e vermelhos e às plaquetas também. E também ninguém consegue informar com precisão como essas doenças vão se desenvolvendo lentamente, sem a menor pressa.
Mas, sim, elas progridem, ainda que a passos de tartaruga. E aí é que está: chega um momento e é como se virassem a chavinha, transformando-se em uma leucemia mieloide aguda das mais agressivas e para a qual, ainda, não há qualquer tratamento. A pessoa, então, não resiste por muito tempo e, pior, sofre um bocado nessa reta final. Que, ao contrário do que acontecia antes, transcorre acelerada.
Digamos que a linha de pesquisa da imunologista Fabíola Attié de Castro era entender essa metamorfose. Mais que isso: a professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo) queria descobrir, vasculhando os genes das células adoecidas, uma assinatura molecular, isto é, uma marca única capaz de apontar em um exame de sangue quem está prestes a ver um câncer indolente se transformar em outro câncer. Na leucemia.
Durante o seu pós-doutorado na Universidade de Toronto, no Canadá — supervisionada pelo cientista brasileiro Daniel de Carvalho, que dá aulas lá —, Fabíola acabou não estudando uma, mas duas dessas assinaturas moleculares.
"Elas seriam como um aviso de que aquela pessoa precisaria ser acompanhada ainda mais de perto porque está correndo um alto risco de apresentar a leucemia mais dia, menos dia", explica. E acrescenta: "Como se tratam de neoplasias indolentes, que parecem no canto delas, muitas vezes o paciente só volta ao ambulatório de quatro em quatro meses. Mas, no caso, os intervalos entre as consultas deveriam ser bem menores."
O melhor do trabalho, porém, é que ele sugere uma saída: "É possível tentar alguns medicamentos para a doença ficar um período maior na fase crônica, impedindo ou adiando sua transformação na forma aguda de leucemia", acredita.
Como as tais neoplasias indolentes costumam surgir lá pelos 40, 50, 60 anos de idade, o prazo estendido seria a chance de a pessoa ter uma vida longa e se despedir dela por outro motivo qualquer. Não à toa, ao sair recentemente no British Journal Haematology, o estudo da cientista brasileira foi o escolhido da vez para os comentários do editor, que eram só elogios pela perspectiva que essa investigação abre, capaz de mudar o curso da história dos pacientes.
Três doenças do sangue
Fabíola Attié acabou se debruçando sobre três dessas neoplasias indolentes, por serem as mais frequentes e as com maior risco de progredirem para a leucemia. Em geral, são flagradas porque o hemograma apresenta alterações.
Na policitemia vera, uma delas, há um aumento das hemácias e da concentração de hemoglobina, a molécula transportadora de oxigênio. "Ou seja, a parte do exame que a gente chama de série vermelha está toda alterada", resume. Mas há outros sintomas. A pessoa pode estranhar a palma da mão que vive vermelha, colorida pelas hemácias além da conta que, às vezes, também deixam a planta dos pés corada. "Prurido no corpo, especialmente no couro cabeludo, pode ser mais uma queixa", acrescenta a professora.
Em outra neoplasia estudada por ela, a trombocitemia essencial, não há um sintoma que faça o sujeito desconfiar de nada. Mas o hemograma de rotina poderá entregar que as plaquetas estão extremamente aumentadas. "Claro, tanto nessa doença quanto na outra, os resultados alterados do exame devem perdurar quando ele for repetido ao longo de três meses", esclarece a imunologista. "O diagnóstico dessas neoplasias, na realidade, nunca é tão fácil. Há critérios bastante complexos para isso."
A terceira delas que foi estudada por Fabíola Attié: a mielofibrose primária. "É a mais grave. A medula óssea, que seria comparável à fábrica do sangue, não funciona adequadamente porque apresenta, como o nome indica, fibroses", diz ela. " A pessoa pode ter anemia, infecções oportunistas e hemorragias."
Uma encrenca levando à outra
Estamos acostumados à imagem de um câncer se espalhando pelo corpo — mas não à ideia de um câncer levando a outro, diferente. E, sim, é o que acontece nas neoplasias indolentes do sangue.
"A célula cancerosa vive mais que as outras, como se quisesse ser eterna", descreve a pesquisadora. "Ela também se divide mais. E, ao fazer isso, pode acontecer um erro, uma mutação adicional." As novas alterações, portanto, é que são capazes de levar a outras doenças malignas.
Assim, a policitemia vera, que afeta os glóbulos vermelhos, pode virar uma mielofibrose e, só depois, uma leucemia mieloide aguda. Ou, quem sabe, se transforme em leucemia direto. A mesma coisa é capaz de acontecer com a trombocitemia essencial, que acomete as plaquetas.
As assinaturas moleculares
Fabíola Attié estudou alterações nos genes de pacientes de quem ela tinha amostras sanguíneas colhidas tanto na fase crônica, a daquelas doenças indolentes, quanto na fase em que a pessoa já estava com leucemia. "Queria ver o que mudava de uma para a outra", relembra.
Possivelmente, existem diversas mudanças nessa transição. Mas a pesquisadora achou mais interessante se concentrar em uma delas: na fase crônica, há uma ativação de genes ligados à produção de interferon, proteína que o sistema imunológico libera na hora em que vai nos defender de um vírus, por exemplo. Essa mesma ativação não era mais observada na fase da leucemia.
A outra assinatura molecular investigada já estava descrita na literatura científica. "Seria uma espécie de marca registrada da leucemia aguda", diz ela. "Ao identificá-la, é como se eu pegasse na circulação aquela célula leucêmica, doente, que ainda não apareceria nos exames de rotina e dizer que a transformação já está acontecendo."
A chance de tratar
O mais curioso de tudo: enquanto aqueles genes ligados ao interferon estão em alta, os da leucemia permanecem diminuídos. Mas, quando a doença passa a progredir, o jogo inverte. Então, os genes da leucemia resolvem a se expressar e os do interferon, ao contrário, começam a se calar, como se estivessem em uma gangorra.
"Logo, se eu ativar esses genes do interferon com medicamentos chamados hipometilantes, talvez consiga manter a pessoa por um tempo maior na fase crônica", sugere a pesquisadora.
Os tais hipometilantes mimetizam o que acontece com o nosso organismo diante de uma infecção viral. Ou seja, sinalizam que é hora de produzir interferon. Mas eles teriam de ser dados em baixa dose para evitar efeitos adversos mais fortes.
"Essa medida para elevar os níveis de interferon — ao menos, é o que aponta o racional — poderia apagar aquela assinatura molecular da leucemia. Na prática, a gente estaria matando as células leucêmicas", explica a professora.
Mas seria então só isso, prescrever hipometilantes? "Não, claro que não", responde ela depressa. "Ora, as células neoplásicas não têm só essa alteração. A gente precisa cercá-la de todos os jeitos. Oferecer, por exemplo, medicações para elas se dividirem menos, como o próprio interferon. E também remédios para combater a resposta inflamatória que, na contrapartida, faz com quem se multipliquem mais."
Portanto, no momento mais adequado — quando o exame de sangue de olho na assinatura molecular mostrar que a leucemia está para surgir a qualquer instante —, os médicos poderiam entrar com esse arsenal e, assim, evitar que a neoplasia existe há anos acelere perigosamente o passo. Que ela continue crônica, sem pressa para ir em frente.
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